Numa vida me parecem raros os momentos em que andamos
sem razão precisa. É nisso em que deveríamos nos concentrar, em andar sem rumo,
sem uma direção definida. Deveríamos habituar nossos filhos a tal prática desde
cedo. Porque no momento em que começamos a fazê-lo, nosso olhar está pintado de
melancolia.
Hoje de manhã tive essa sorte. Saí por uma boca de
metrô, segui andando. Logo percebi que estas ruas que sempre admirei com um
olhar de turista agora me traziam lembranças. Memórias e sensações de vinte
anos atrás. Me espantei com o que vi: uma enorme defasagem entre a situação do mundo
e a ocupação do espaço. Por todo lado uma quantidade indecente de lojas. A
medida em que avançava tentava observar as construções, mas as fachadas me
remetiam invariavelmente à uma necessidade inexistente. Um par de botas para o
inverno, um novo lençol, um presente, um livro. Tive que fazer um esforço para
desviar destes pensamentos. Em meio às lojas, restaurantes e bares acordando da
noite anterior. Alguém ainda morava nessas ruas?
Uma dessas lembranças de vinte anos atrás é uma imagem
de um café da praça, perto do museu de arte moderna. Era o começo da internet, a gente frequentava
o café porque a conexão era de graça. A única coisa que fazíamos era consultar
a caixa de entrada, o que levava um certo tempo porque o processador do computador
não era muito eficiente, a conexão era ligada à linha telefônica, e porque
naquela época o tempo passava de outra forma. Apesar de comercial, o bairro
tinha muito menos lojas e restaurantes. A atração principal era o museu. Tinha
também essa loja que vendia cartões postais e posters. E logo ali, numa rua de
nome engraçado, o cabelereiro. Naquelas férias, sob o frio espesso e céu baixo de
fevereiro, cortei os meus cabelos curtos nesse salão que mais parecia um bar. Mal
sabia que todos os lugares, vinte anos mais tarde, pareceriam com esse cabelereiro,
que por sua vez parecia um bar. É também assim que me dou conta que envelheci, acho
ruim quando uma doceria parece uma bijuteria, quando uma lanchonete parece uma
loja de roupas, quando uma vendinha parece um museu. Perdi a orientação estética.
Ainda que boa parte dessas considerações se deva à
melancolia que vem com a idade, a sensação de defasagem persiste. Num período
em que deveríamos barrar a produção desenfreada de objetos, as fachadas se
multiplicam. Expomos mais e mais produtos nas vitrines, e as pessoas a vontades
desnecessárias. E ainda que consigamos, num dado momento (cada dia mais crítico),
desconfigurar o impulso do consumo, como preencheremos o espaço deixado pelo desejo
do objeto? Talvez neste momento recomeçaremos a andar sem direção precisa e
nos desfaremos da razão utilitária.