15 novembre 2024

Fachada

Numa vida me parecem raros os momentos em que andamos sem razão precisa. É nisso em que deveríamos nos concentrar, em andar sem rumo, sem uma direção definida. Deveríamos habituar nossos filhos a tal prática desde cedo. Porque no momento em que começamos a fazê-lo, nosso olhar está pintado de melancolia.

Hoje de manhã tive essa sorte. Saí por uma boca de metrô, segui andando. Logo percebi que estas ruas que sempre admirei com um olhar de turista agora me traziam lembranças. Memórias e sensações de vinte anos atrás. Me espantei com o que vi: uma enorme defasagem entre a situação do mundo e a ocupação do espaço. Por todo lado uma quantidade indecente de lojas. A medida em que avançava tentava observar as construções, mas as fachadas me remetiam invariavelmente à uma necessidade inexistente. Um par de botas para o inverno, um novo lençol, um presente, um livro. Tive que fazer um esforço para desviar destes pensamentos. Em meio às lojas, restaurantes e bares acordando da noite anterior. Alguém ainda morava nessas ruas?

Uma dessas lembranças de vinte anos atrás é uma imagem de um café da praça, perto do museu de arte moderna.  Era o começo da internet, a gente frequentava o café porque a conexão era de graça. A única coisa que fazíamos era consultar a caixa de entrada, o que levava um certo tempo porque o processador do computador não era muito eficiente, a conexão era ligada à linha telefônica, e porque naquela época o tempo passava de outra forma. Apesar de comercial, o bairro tinha muito menos lojas e restaurantes. A atração principal era o museu. Tinha também essa loja que vendia cartões postais e posters. E logo ali, numa rua de nome engraçado, o cabelereiro. Naquelas férias, sob o frio espesso e céu baixo de fevereiro, cortei os meus cabelos curtos nesse salão que mais parecia um bar. Mal sabia que todos os lugares, vinte anos mais tarde, pareceriam com esse cabelereiro, que por sua vez parecia um bar. É também assim que me dou conta que envelheci, acho ruim quando uma doceria parece uma bijuteria, quando uma lanchonete parece uma loja de roupas, quando uma vendinha parece um museu. Perdi a orientação estética.

Ainda que boa parte dessas considerações se deva à melancolia que vem com a idade, a sensação de defasagem persiste. Num período em que deveríamos barrar a produção desenfreada de objetos, as fachadas se multiplicam. Expomos mais e mais produtos nas vitrines, e as pessoas a vontades desnecessárias. E ainda que consigamos, num dado momento (cada dia mais crítico), desconfigurar o impulso do consumo, como preencheremos o espaço deixado pelo desejo do objeto? Talvez neste momento recomeçaremos a andar sem direção precisa e nos desfaremos da razão utilitária.       


14 novembre 2024

Previsão do tempo

Sou uma dessas pessoas que não consultam a previsão do tempo antes de sair de casa. Com o aquecimento global e a tecnologia de ponta dos instrumentos de medida, essa seria a atitude mais sensata a se tomar. Um hábito salutífero. Atualmente os dias podem ser extremamente quentes ou frios, em qualquer estação. Eles podem ser secos numa semana, e na semana seguinte diluviais. As ruas alagam, o campo queima. Essa questão da previsão seria mais simples se por “aquecimento global” pudéssemos entender “dias mais quentes”. Mas em se tratando do clima, a escala à qual o termo faz referência é a escala geológica. Do alto da nossa pequena individualidade egocêntrica, o termo “aquecimento global” nos induz à um desvio semântico. A temperatura da Terra aumenta rapidamente, mas no plano individual, o efeito é a variação irregular e extrema. É por essa razão que minha mãe me disse outro dia que numa noite de inverno foi dormir com 28 graus e acordou com 12. É também por isso que ouvimos comentários desavisados como aquecimento global com esse frio? Um desvio semântico que acaba por afundar um senso crítico atrofiado, ou um espírito desinteressado.

Mas ainda que “aquecimento global” evoque uma imagem mais ou menos exata na minha cabeça, não me dou ao trabalho de consultar a previsão do tempo. Olho pela janela, às vezes vou até a sacada. De manhã, saindo das cobertas, sempre tenho frio. Se está escuro, nenhuma conclusão me vem à cabeça. Se o dia já despontou, tenho sempre a esperança de um equilíbrio, onde quer que se situe.

Assim, incapaz de chegar a uma certeza, ponho a roupa que desejo, segundo o meu humor. É logo na porta de casa que percebo os primeiros indícios da temperatura do dia. Saias esvoaçantes e pés desnudos significam uma tarde entre vinte e trinta graus. Se levam uma blusa nas costas ou nas mãos, abaixo de vinte e quatro. Se saem apenas com a bolsa ou a mochila, ou a sacola do computador, acima de vinte e quatro. Casacos mais pesados sem cachecóis, frente fria entre 16h e 18h. Luvas e gorros nunca enganam, a temperatura não passará dos dez. Acontece de um par de luvas aparecer fora de época, mas em se tratando de um indício isolado, não tem efeito estatístico.

Como toda previsão, esse método tem sua margem de erro. Casacos e sandálias andando lado a lado indicam instabilidade. Nenhuma antecipação do futuro é perfeita. Ainda que a probabilidade que algo se repita seja alta, nada é cem por cento certo tirando a morte. É a visão dos guarda-chuvas que invariavelmente me provam que o método é confiável, mas de pouca eficácia no meu caso. Do lado de fora o céu está limpo, o asfalto seco, o contorno bem definido, cada coisa e pessoa pertencendo a si mesmas. Mais tarde, quando a água surgir das nuvens escuras e pesadas, e tudo se encharcar tornando-se um amálgama de matéria, eu não escaparei ao fenômeno e minhas roupas ficarão molhadas, assim como os meus cabelos e pés. Apenas os guarda-chuvas salvarão seus donos da precipitação, potencialmente provocada pelo aquecimento global, ainda que a chuva seja fria e fina.

30 juin 2024

Regalecus Glesne, ou o peixe do fim do mundo

As palavras ecoavam, provocavam ondulações baixas e compridas. O vimos avançar tal um mastro de navio. Se chocavam nas ondas que tinham origem em mim, na minha corpulência, e mudavam de direção. Eu curvava uma parte, e outra, e mais outra, e também mudava de direção. Apesar do peso da profundeza me movimentava sem obstáculos, e assim também as palavras seguiam se chocando em outras ondulações e voltavam. Derrubava tudo sob o seu caminho, mesmo as árvores e as cabanas. Me agradava avançar deslizando, me opondo ao fluído pesado, a força do meu corpo contendo a vontade da água de ocupar o espaço.

Ali no fundo não existia o tempo, nem a nitidez dos contornos. Mas a vibração da água produzia imagens, e assim eu via outras corpulências. E claro, as palavras. Seus assobios, ou melhor, seus gritos arrepiavam quem os ouvia. A tudo isso eu preferia o toque. Acontecia, ainda que raramente, de outra grande corpulência encostar em mim. Era uma implosão, um desregro. Me agradava a resistência de outro corpo. Sua rugosidade suspendendo momentaneamente a fluidez. E sobretudo o que antecedia o encontro : uma perturbação ampla com frequência alta, cada vez mais forte e concentrada. Depois, sobrevinha um vazio. Um vaguear. Queria me desfazer, me fundir na fluidez. Até que a calmaria da água me trazia de volta as palavras. Elas punham as coisas no lugar. Sua cabeça era tão grande quanto um barril, e o seu corpo, de mesma proporção, se levantava acima das ondas numa altura considerável. Então seguia, oscilando.  

Essa parte, se levantava acima das ondas, era misteriosa para mim. Talvez porque ecoassem desde tempos imemoriais, as palavras tinham mudado de sentido. Ou fosse essa apenas uma imagem. As ondas eram parte de mim, me balançavam, e tinham origem em mim. Aquilo continuava ressoando, ia e vinha. E isso foi assim, até que chegamos no começo.

Vibrações, cada vez mais amplas, criaram uma imagem disforme. A frequência aumentava desarmonicamente. Vinham de baixo, do lugar mais profundo, de um epicentro. Foi de repente que uma força desconhecida tomou uma direção, levando tudo consigo. Minha corpulência foi rapidamente puxada pra cima, mas a ascensão me pareceu longa. As coisas foram se tornando surpreendentes, ganhando contorno, se separando umas das outras. Pela primeira vez eu vi as coisas, a intensidade da luz.

Me encontrei numa altura inimaginável. Voava. Via tudo à minha volta, pequenas presenças em cada lugar, cada uma de uma forma. Depois, foi a queda. Violenta. Fora da água o toque era doloroso, a rugosidade afiada, quase insuportável. A água se espalhou por todo lado, ocupando o espaço, escondendo as minúsculas presenças. Eu avançava sem contrôle, batendo em outros corpos sem nenhum aviso. As palavras agora tinham outra vibração, aguda, estridente. Me veio à cabeça assobios e gritos. Aterrissei sob uma aspereza desagradável, dura, e ali eu comecei a secar. As sensações já não se sucediam umas às outras numa sequência, tudo era confusão e ansiedade. E foi ali, acima das ondas, asfixiando numa solidez, que enfim as palavras fizeram sentido. Tratava-se de uma profecia.  

O vimos avançar tal o mastro de um navio, derrubando tudo sob o seu caminho, mesmos as árvores e as cabanas. Seus assobios, ou melhor, seus gritos, arrepiavam quem os ouvia. Sua cabeça era tão grande quanto um barril, e o seu corpo, da mesma proporção, se levantava acima das ondas numa altura considerável (1656, relato de viajantes nórdicos sobre a serpente marinha em Histoires Naturelles de la Norvège 1752-1753).    

O matemático

Entrei no vagão, na porta à frente do segundo extintor de incêndio do corredor, no trem das 7h35. Foi o tempo de uma rápida olhada e logo o ví, rodeado de sacolas. Estava sentado num destes bancos que abrem e fecham. A maioria dos passageiros ocupava o lado oposto, claramente evitando o contato. Apenas duas ou três pessoas estavam mais próximas. Resolvi me posicionar no meio do vagão e me felicitei com a escolha. Dali tinha um ótimo campo de visão.

Ao contrário das aparências, sentíamos o cheiro dos perfumes caros, dos ternos e tailleurs bem lavados. A linha de trem passava pelos prédios das Embaixadas e da Organização Mundial. Se tudo corresse como o esperado, desceriam depois de mim. Achei a escolha curiosa, sem colocá-la em dúvida.

As sacolas estavam abarrotadas. A primeira, amarrada num carrinho de ferro, tinha sido fechada com fita colante. Pelo exterior não podia adivinhar o que tinha dentro. A outra, mais perto do homem, estava cheia e aberta. Uma bolsa laranja, dessas de viagem. No topo, avistei o livro do Karl Popper, e um outro do Alexandre Koyre. Em nenhum momento ele levantou os olhos da caderneta preta. Anotava incessantemente, franzia a testa, fazia movimentos com a boca. Na terceira parada, entreabriu uma sacola de supermercado e sacou uma calculadora científica. Impossível dizer se tinha notado a minha presença.

Não posso afirmar que a sua postura não tenha me desestabilizado. Nunca esqueci o que tinham dito dele. Que era um dos maiores, que tinha uma lista de feitos extraordinários. O matemático, diziam. Na época as coisas não tinham mais nada dos anos 70, da era pós crise dos misseis, das deserções. Mas Paris continuava a ser um dos lugares mais seguros para passar informações. E bem ou mal, oposições e interesses se redesenhavam, estratégias eram tramadas, corpos eram descobertos em quartos de hotéis.   

Apesar do horário o trem seguia num movimento tranquilo, e umas três paradas depois, resolvi me virar para o homem. Queria cruzar o seu olhar, porque das outras vezes foi assim que soube que estava fazendo a coisa certa. O olhar do outro me dizia “continuemos”, e eu seguia cumprindo o meu papel, como no roteiro. Mas ele não parou de escrever, não fez um gesto sequer em minha direção. Foi aí que me veio à cabeça uma questão inopinada : o que eu tinha pra fazer essa missão? Eu conhecia os meus recursos: uma bolsa de fundo falso, roupas neutras de secretária, uma minúscula capsula de cianeto. Minha dúvida era outra, mais profunda. Naquele momento, o mais inadequado, me perguntava que força tinham visto em mim, a razão pela qual tinham me escolhido. Seria possível que ao invés de uma força escolhessem a pessoa por uma fraqueza?

Um barulho repentino trouxe a minha atenção de volta ao vagão, uma discussão entre um homem e uma mulher que aparentemente não se conheciam. Logo me concentrei nas páginas. Estavam repletas de fórmulas, símbolos que me eram estranhos, extremamente ordenados. A mão do matemático parou no meio de um número extenso; ela parecia esperar, querendo anotar o que se seguiria.

- Com licença.

A mulher vinha em nossa direção, atravessando o trem rapidamente. O matemático levantou a cabeça, olhou-a de modo firme. Pude sentir a rigidez dos seus movimentos; ao se levantar já não era mais aquele corpo mole que se misturava às sacolas, mas uma presença que pareceu absorver toda a tensão à volta. Num instante fui percorrida por um formigamento e as palavras se formaram na minha cabeça: ele acha que ela sou eu...

Me aproximei da sacola, o matemático deu um passo à frente, a mulher estava quase à nossa altura quando a porta se abriu. Me agarrei no corpo rígido, com toda a minha força. Caímos num abraço pra fora do trem. Ainda pude ver a caderneta no chão, e a mulher se agachando enquanto o sinal tocava, estridente. A porta fechou de uma vez.

Ele se levantou, arrumou as roupas e começou a murmurar palavras desconexas. Seu corpo tinha se tornado incômodo novamente. Esbarrava nas pessoas que começavam a nos rodear, fazia gestos amplos com os braços. Uma mulher me puxou pela cintura. Ouvi vozes que diziam que aquilo era inadmissível, que alguém chamasse a policia. Eu só conseguia pensar no livro que tinha na mão esquerda e que segurava com força. Queria colocá-lo o mais rápido possível dentro da minha bolsa, caída aos meus pés. Karl Popper. O matemático desapareceu na confusão, sem que ninguém lhe impedisse, sem que se dessem conta. Eu tentei me desvencilhar dos cuidados como pude. Sorri, afirmei que estava bem, tomei um gole da água que me ofereceram, estava atrasada para o trabalho. Dez minutos depois dele, eu estava na rua.    

Dois dias mais tarde coloquei o livro na caixa de correio de um hotel, no centro da cidade. Essa foi a minha última missão. Nunca mais fui contatada. Revivi a cena uma quantidade de vezes. Durante anos sonhei com a mulher e o matemático. Numas vezes eram amantes, noutras ela o desenhava na caderneta. Sonhei com o nosso abraço, a nossa queda, na maneira como o meu corpo fino tinha se confrontado à sua rigidez. Não consegui decidir se o impulso do salto tinha vindo de mim, ou dele. Se era possível que eu o tivesse empurrado pra fora, ou se o seu plano era mesmo saltar. Foi bem mais tarde que me veio à lembrança um de seus movimentos: segundos antes da queda, ainda suspensos no ar, ele sussurrou “Popper” . Mas talvez seja invenção minha.

 

Temos o hábito de sentar na frente dele. Até gostamos desse momento. Todo mundo gosta de atenção, do interesse que os outros tem na gente. E sua voz é agradável, quase voz de interlocutor de rádio. Fala bem, mas evita as palavras difíceis.

- Não podemos demorar muito, hoje o meu dia está cheio.

- Você sabe que nos vemos todas as semanas.

- Eu sei, mas não é sempre que posso conciliar minhas agendas.

- Suas agendas?

- Minha vida pessoal, meu trabalho...

- E se você falasse mais da sua vida pessoal?

- Mas pera aí, que merda é essa? E a comida? Nada sobre a comida? Vida pessoal o caralho!

Nunca estamos de acordo. Sobre nada. Nem mesmo sobre o que devemos falar. Isso é frustrante. Parece uma corrida nesses tapetes de academia. Sempre jogando o corpo pra frente, sem chegar em lugar nenhum.

- O que tem a comida?

- Não tem nada. Esse é o problema. Com dois ou três ingredientes, faço muito melhor.

- Se sente frustrado?

- Indignado! Sou chefe com estrela, me formei nos melhores restaurantes! Meu molho de trufas ganhou até prêmio. Puta que pariu, ninguém nunca comeu trufa aqui! Trabalho no Grand Colbert, lá perto da biblioteca nacional...  

Às vezes um de nós se sente mais à vontade, e a coisa vira pro monólogo. Eu sei que o homem não gosta disso, mas evita interromper. Anota umas coisas, e acena com a cabeça numa afirmação contínua. Acredita piamente nas palavras. Parece até que cada coisa que sai de nossas bocas tem um significado à parte, é um pensamento em si. Mas a gente só diz besteira, coisa banal. Ninguém é realmente muito interessante. O pior é que a gente nem tem muita coisa em comum. Tipo família,  fadados a conviver uns com os outros, a aturar a burrice dos outros.

- Eu tô achando isso muito chato, quero ir embora...

- Ainda não é a hora de ir embora. Você está triste?

- Tô. Ninguém me deixou ver desenho...

- Quem não deixou? Sua mãe? Seu pai?

Sempre tem essa hora do choro. É a criança que chora, porque não assistiu televisão, ou porque perdeu um brinquedo. Mas quando o homem toca nesse assunto, pergunta sobre sua mãe e seu pai, ficamos mudos. Ninguém lembra da onde vem, mas ninguém diz em voz alta. Isso mexe com a gente, porque gostaríamos de saber. Ficamos mostrando segurança, afirmando, falando mais alto. É só faixada. Todo mundo vem de algum lugar, menos a gente. E como nenhuma lembrança vem à cabeça, não dá pra puxar o fio da história. Nascemos desse jeito, nessa sala, já cacarejando... blá blá blá, falando, falando, falando. Isso não ajuda, tem sempre um falando, ninguém escuta. Como se pode pensar assim? No fim nem sabemos mais o que estamos fazendo aqui.  

- Me conte alguma coisa de quando era mais criança. Lembra de alguém te segurando no colo? Cantado uma música?  

- Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca!

Silêncio. Isso dura pouco, a cacofonia está sempre ali, engatilhada, mas por uns instantes... um silêncio. Como se o homem não existisse mais, ou os móveis desconfortáveis, ou a comida ruim. Nenhum de nós, nada.

- Aí está.

O homem espera, olha pra gente disfarçando um sorriso. Parece até que descobriu uma lei da Física. No fundo ele só se interessa por um de nós. Faz de conta o tempo todo, acena com a cabeça, como se ouvisse. Uma falsidade só. Uma estratégia, isso sim.

- Nada mais?

- Estamos perdendo tempo. Doutor, o senhor sabe que não posso passar da hora. Hoje vejo um cliente, caso de corrupção no futebol. Parece que tentou comprar um juíz e dois jogadores. Uma besteira, com tanto prestígio, vai se enfiar numa sordidez dessas.

- Digo, dessa cólera. Senti uma raiva que se exprimiu de repente.

- Raiva? Não tem cabimento. Enquanto profissional não posso ter esse tipo de sentimento, porque no Direito não há lugar para emoções, apenas os fatos devem ser trazidos à público, a neutralidade é a maior qualidade, como na vez em que defendi...     

Mas logo mais tudo isso acaba. Toda essa ladaínha. Outro dia, passamos pela entrada, subimos os dois lances de escada até a sala do homem, e alí estava : uma janela sem grade. É a do fundo do corredor. A coisa vai ter que ser rápida. Ninguém sabe. Nem tem como. Serão pegos de surpresa, ou nem vão percerber o que está acontecendo. Num momento estaremos andando em direção à sala do homem, e no outro voando do lado de fora. E aí sim, será só tranquilidade e silêncio.

05 juin 2024

Lembra do Beto? Era a única perua azul, fácil de achar. O degrau era alto, e ainda tinha a mochila pesada nas costas, mas ele sempre dava uma mão. Pra você aquilo ia muito rápido, os meninos se empurrando, as crianças falando alto, o fim do dia tinha essa agitação de cansaço. Você grudava na sua amiga, que era forte e brava. Talvez fosse ela que grudasse em você, porque era alta e um pouco mais velha. Vai saber quais são os verdadeiros motivos da escolha de nossos amigos. Isso eram, boas amigas, e no meio da bagunça que te desagradava, do barulho (o Beto dizia “sem gritar”, mas tão fraquinho que ninguém ouvia), a presença de uma amiga forte e brava te reconfortava.

Na Páscoa trazia ovinhos de chocolate, e no dia das crianças, figurinhas. Imagina, ele comprava do próprio bolso, sem obrigação. Também distribuía guarda-chuvinhas de vez em quando. E logo que entrava no banco do motorista, depois de carregada a perua, ligava o rádio. Durante o caminho as crianças mudavam de lugar, trocavam sobras de lanche, umas pulavam no chiqueirinho, pés passavam por cabeças. Sempre tinha uma conversa sobre um novo brinquedo, ou meninas que batiam mãos. As únicas três que nunca participavam eram as crianças amontadas no banco da frente. Eram sempre as mesma, por facilidade. Essa idéia de sentar na ordem da entrega nunca funcionava, lembra? Os endereços raramente coincidiam com as amizades. Uma queria ficar do lado da outra, todo mundo trocava de lugar, e cada vez que o Beto parava pra uma entrega, levava um tempo pra criança surgir do fundo da perúa. Como se saísse de uma gruta. Mas apesar do trânsito, da gritaria, da demora, o Beto seguia tranquilo. Graças ao rádio. Ouvia música o caminho inteiro.

Você não sabe, mas o fato dele ouvrir rádio é importante. Eu mesma só descobri isso muito mais tarde. Não sei como tomei conhecimento dessa música, mas no instante em que a ouvi, foi como se estivesse na perua do Beto. Sentada no banco de falso couro preto, que cola nas pernas. Olho para fora, e vejo o céu de um azul de começo de noite em São Paulo. Se mistura com as luzes dos faróis e das garagens dos prédios. Elas se desfocam, talvez com a chuva, e aparecem como estrelas coloridas pela janela da perua. Nesse ano de 1984, elas iluminam a noite cada vez mais escura. 

A música tem um nome pomposo. Uma introdução feita de sons daqueles anos. E uma frase mágica que diz “dentro do bombom há um licor a mais”. Uma extravagância. Evito dizer que a conheço (aliás, ninguém me pergunta), e não a ouço quase nunca, de medo que algum dia ela perca o seu poder. Nunca li a letra, me atenho às palavras à medida que surgem na melodia. Eu a guardo como uma joia. É a minha cápsula do tempo. Cada vez que a escuto é como se estivesse aí com você, e que vivesse de novo essa ideia borrada do mundo. Todas essas coisas que te rodeavam nesse ano de 1984... no seu lugar, experimento toda a incerteza dos nossos cinco anos, e curiosamente sinto saudades. Mas não sei exatamente do quê. Lá pelo meio da música acontece uma coisa estranha. É como se ela me jogasse pra frente, num impulso, pra tudo aquilo que vem depois, e que advirá. Nesse momento da música, é como se você estivesse aqui comigo, e experimentasse a minha temeridade.   

Depois do Beto, veio o seu João. Perua clássica, branca, com a faixa “escolar”. Perua taciturna como o motorista. Todo mundo ia sentadinho, pra facilitar a entrega. Nada de lanche ou figurinha. Eu só consigo lembrar dele na hora do almoço. A única coisa que te divertia era o assobio que ele combinou com vocês, pra que soubessem que ele já tinha chegado. Alguns anos depois, já no colegial, passei na frente da escola; ele ainda assobiava do mesmo jeito.

Resistência

 

A praça estava toda tomada. O sol a pino e as inúmeras estruturas erguidas para a ocasião deixavam-na irreconhecível. Os hieróglifos do obelisco brilhavam sob a luz. De hábito, era um lugar espaçoso. Poucos tinham o privilégio da visão panorâmica, mas o espaço surpreendia até mesmo quem a alcançava por uma das travessas. Vindo de uma rua estreita, de repente se deparavam com a grande rotatória oval, a entrada do parque, o começo arborizado da avenida larga, o chafariz. Também a claridade não era a mesma, na maior parte do ano o céu baixo e cinzento coloria os prédios haussmanianos de um tom rosa pálido. Mas ali estavam os espectadores em grande número, numa massa densa e contínua. O dispositivo de segurança impunha níveis de acesso, portões de ferro e catracas, fazendo com que os espectadores mais abastados se encarcerassem com os atletas no meio da praça. De longe, eram invisíveis. Uma vez ou outra, uma bicicleta se destacava da multidão, numa manobra.   

Vincent viu pelo visor uma mulher segurando o braço da filha, muito pequena para assistir um dos telões. Fazia movimentos amplos e dinâmicos com o abanador de papel. Uma derrogação ao plano inicial, mas devido à temperatura acima dos 35 era isso, ou os esguichos de água. O diretor geral do corpo de bombeiros logo descartou a segunda possibilidade com o inventário de cabos de borracha. Corte de gastos.

- Malditos abanadores! Fuck...

Nenhuma reação do americano ao seu lado. Talvez não tivesse entendido, era possível que só falasse inglês. O governo americano tinha aberto uma exceção para a ocasião, liberando o terraço da embaixada para a tropa Luxor. Vincent avistou um grupo de jovens que compartilhava uma garrafa. Os americanos tinham até posicionado alguns atiradores. Deitados no chão do terraço, miravam pelos buracos da mureta feitos para esse propósito. Cada atirador a um metro de meio de distância um do outro. Um barulho surdo ecoou pela praça. Gritos vindos da multidão, e aplausos. No telão apareceu uma japonesa, no máximo 14 anos, agitando um skate no ar. Era ouro.

Em 1836 mais de duzentas mil pessoas tinham se reunido ali mesmo para assistir ao erguimento do obelisco. Vindo de navio desde o Egito, tratava-se de uma proeza técnica. Vinte e dois metros de altura. O obelisco tinha sido um presente do vice-rei Méhémet Ali, que deixara a entrada do templo de Luxor em Tebas incompleta. Outro obelisco ainda protegia a entrada, mas sem o seu gêmeo, perdia a força simbólica. Parecia uma porta desdentada. Já naquela época poucas pessoas tinham o privilégio da visão panorâmica da praça. A família real fazia parte delas, e no dia do evento seus membros preferiram usufruir do privilégio, ao invés de aproximarem-se do obelisco. Temiam a aglomeração, que naquele lugar já tinha sido de mau agouro.   

- Do you know, esse presente dos egípcios protegia o templo de Amon, o desconhecido.

- Really?

Três homens de casaco atravessavam a primeira catraca. Vincent tentou se concentrar nas cinturas. Nenhum sinal vermelho, mas os casacos pareciam grossos. Um deles usava um boné bordado com as argolas. O mais baixo enfiou a mão num dos bolsos, ficou nervoso. Pôs a mão no outro bolso, e nos da calça. Começou a gesticular, e seus amigos também se puseram a procurar alguma coisa nos bolsos e numa sacola de plástico que um deles levava na mão. Se dirigiram ao segurança da catraca. Vincent fechou os olhos.  

A praça não tinha tido sempre o mesmo nome. Em 1794 se chamava Praça da Revolução. Das duas mil quatrocentas e noventa e oito pessoas decapitadas entre 1789 e 1795, mil cento e dezenove tinham perdido a cabeça bem ali. Danton, Luís XIV e Maria-Antonieta, madame du Barry, Lavoisier, Malesherbes. A praça foi nomeada praça da Concórdia em 1795, mas duzentos e trinta anos depois, nesse dia quente de 2024, esse nome talvez não fosse suficiente para espantar o mau agouro.

Ao abrir os olhos uma luz intensa atingiu as retinas de Vincent, fazendo com que os nervos óticos levassem até o cérebro uma primeira informação - a dor - e outra informação quase simultânea - o medo. Vincent apertou bem forte os olhos, esperando o barulho. E como nada vinha, reabriu-os lentamente. Teve a impressão de ver as cabeças ensanguentadas, mas no telão um moço, carregando uma bicicleta, era carregado pelos outros atletas. Outro ouro. O visor de sua arma se encontrava no ângulo exato da reflexão do feixe de luz, que naquele instante batia na ponta do obelisco. Mais ouro. Dali a quinze minutos chegaria o colega do turno da tarde. Vincent respirou aliviado.