18 mars 2024

Aula de inglês

Há mais de dois anos fazia aulas de inglês à distância. Não achava que aquilo lhe convinha, mas tentou,  e logo tomou gosto. Não sabia muito do professor, apenas que era inglês, e que vivia no campo. As aulas tinham por objetivo a prática oral, ele lhe incitava a falar e corrigía-lhe as frases. Ela discorria sobre assuntos de sua escolha. Descobriu um verdadeiro prazer na oralidade. Como o professor não dizia muita coisa, às vezes tinha a impressão de estar num confessionário. No primeiro ano se concentrou em assuntos mais gerais : a guerra na Ucrânia, a imigração, o coroamento do rei. Mas depois, considerando que já tinham alguma initimidade, passou a contar a própria vida. Falava das suas preocupações, que mudavam com a idade, dos problemas no trabalho, do filho que lhe dava dor de cabeça, da vizinha, solitária e invasiva. Chegava até a contar-lhe sentimentos inconfessáveis. Talvez fosse a liberdade que lhe propiciava a língua estrangeira, como se as palavras fossem apenas sons, quase desprovidas de qualquer significado. Dizia o que não se permitia escrever na língua materna. Mas também tinha o professor, a impassibilidade inglesa. Às vezes percebia uma ligeira mudança de tom, na fala ou na feição, mas seguia calado, imperturbável.

As festividades de Natal tinham espaçado as aulas. Fazia três semanas que não se víam, começou a se sentir pesada, os sentimentos se amontoando uns nos outros. Perspectivas que 2024 lhe reservava:  o último semestre de escola da filha, as novas resoluções, a preocupação com o próprio bem estar. Tinha lido um artigo interessante sobre a importância da flora intestinal na psique humana. Foi com grande entusiasmo que ligou o computador meia hora antes, e consultou o site de tradução. Nessa primeira aula do ano queria expressar-se de forma fluída, usando um vocabulário exato, como se as eventualidades de 2024 fossem inversamente proporcionais à clareza de suas frases. Quando a imagem do professor apareceu na tela sentiu certa agitação. Ele apareceu como sempre, feição imperturbável, arborando um sorriso de começo de ano. Sem atardar-se no “Happy New Year” ela desatou a falar com tanta fluidez, que se surpreendeu. Contou da ceia na casa da sogra, da ave e do acompanhamento, do sentimento vazio que ultimamente lhe trazia a troca de presentes. Falou de suas resoluções : evitar comprar objetos inúteis ou baratos, estudar a macrobiótica, interessar-se pela dinâmica de compostagem, passar mais tempo com os filhos. Ela explicou que devido às festividades não tinha tido tempo de estudar um assunto particular, mas tinha coisas para contar (pensou em deixar a flora intestinal para depois). O professor lhe disse, como de hábito, então olhemos um pouco do vocabulário da última aula, e colocou as palavras numa mensagem. Ela se lembrou da metade, ele lhe explicou mais uma vez o significado da outra metade. Depois, como de hábito, observou um silêncio : era o sinal para que ela começasse a abordar o assunto do dia. Tocada pelas perspectivas que o futuro lhe reservava, começou com a filha, e a possibilidade dela sair de casa ao entrar na faculdade e... o professor lhe interrompeu. Concentrada nos próprios pensamentos, não entendeu o que ele tinha dito. Sorrindo, pediu sorry could you repeat? Sem mudar de expressão disse que não se sentia bem, que deveriam cancelar a aula. Confusa, respondeu que certamente, não havia problema.

Quando a tela tornou-se escura, lembrou que não lhe desejara melhoras. Talvez devesse ter proposto ligar para a emergência, mas não conhecia o número na Inglaterra. Não sabia o que poderia ter-lhe acometido, não parecia sofrente. Lhe ocorreu que poderia ter tocado num assunto delicado; como ela, ele também devia se sentir mais sensível no começo do ano. Não soube identificar a gafe.

Nos dias que se seguiram esperou uma mensagem propondo uma nova data, um e-mail automático, indicando um horário. Então escreveu uma, duas, três mensagens que se sucederam, sem resposta. No seu perfil, novos comentários e avaliações exaltavam suas qualidades pedagógicas. Mas com ela nunca mais trocou uma palavra. Se arrependeu de não ter perguntado se tinha passado boas festas.     

Devido à afluência, à metereologia ou alguma ocorrência intempestiva, o trem das 7h52 embicou no último corredor, reservado à longas distâncias. A saída era maior que de hábito, o que deu aos passageiros a sensação de desembarcarem num outro lugar. Isso era em parte verdade, mas depois de alguns segundos nos quais puderam experimentar a excitação do destino desviado, avistaram a saída cotidiana. Passou por um espírito mais avisado que é preciso muito pouco para desejarmos uma outra saída.   

 


05 février 2024

Dia das mães

O florista dispunha os vasos da melhor maneira, era véspera de dia das mães, esperava ganhar mais do que no Natal. Se não fossem as duas camas, poderia buscar mais vasos no estoque. Não estando exatamente diante da loja, não tinha como ligar pra administradora. Sentiu um pequeno consolo ao ver a banca abrir. No dia em que o funcionário se atrasou, quase não vendeu. Tinha uma teoria, achava que o cheiro do café deixava as pessoas mais esperançosas. Até mesmo os que não bebiam café.  Viu um dos cobertores se mexer e soltou um palavrão. Ainda se ficassem quietos poderia ligar para o Samu, mas não tinha como, eles se virando de um lado pro outro. Pensou “eles” porque cobriam o corpo todo com as cobertas, até a cabeça, mas ultimamente vira também umas mulheres. Nos dias mais frios via de tudo. Até familia com criança bem pequena. Uma vez até um recém-nascido, parecia acabado de sair da barriga. Mas quando não fazia menos de 15, os outros sumiam e só sobravam os bêbados. Um ou outro maluco, mas a maioria bêbado. De manhã as pessoas deixavam pacotes de bolacha ou pão, mas eles não ligavam, mijavam ali mesmo perto da comida. Depois pegavam as coisas, juntavam tudo num saco e saíam por aí. Certamente em busca de bebida. Era isso o que faziam, dormiam e bebiam. Uma vez, na reunião da administradora, tinha dado a idéia de jogar gasolina. Não neles, no chão. Mas o dono da banca logo se indignou. Com que direito? Não era ele que vinha todos os dias, tinha um funcionário, e também as pessoas não deixavam de comprar um pacote de cigarros ou um café por causa das camas.

Um homem se aproximou da caixa registradora, com dois grandes vasos na mão. Disse que pagaria mais dois iguais. Certamente não eram para a mãe. Até tinha os que compravam flores para as esposas nessa época, mas quatro era muita coisa. O florista passou o cartão e foi buscar mais dois vasos no estoque. Quando voltou avistou o homem se aproximando da caixa registradora novamente, de mãos vazias. Ele tinha colocado um vaso do lado de cada um dos colchões, que ficavam um pouco mais distantes. Aguardou o florista lhe estender dois novos vasos. Dessa vez, colocou-os ao lado dos colchões vizinhos. Depois saiu em direção à catraca.

Pensando no dia das mães, o florista recuperou os vasos. Não sabendo onde colocá-los, jogou os vasos no lixo.  Só não podia deixá-los ali, dando a impressão que cada cama era uma cova, e que velavam mortos. 

23 septembre 2023

Ovos

Cruzei com ele numa rua arborizada, a sombra das árvores escurecendo o dia brilhante. Certamente todos que moravam por aquelas ruas, ou até mais longe, já o tinham visto pelo menos uma vez. Mas talvez não prestassem atenção. Eu o cruzava frequentemente. Ia, como de hábito, com uma calça e um paletó pretos. Tinham cortado o seu cabelo, bem rente ao crânio, estava quase careca e aquilo não lhe caía bem, lhe dava aparência de louco. “Certamente se dirige ao supermercado”, pensei. Seguia naquela conversa infinita. Pensei se também conversava quando dormia. Me admirava sua capacidade de encontrar tanto assunto. Devia prestar muita atenção nas coisas, nas pessoas, ou então evocava outra época, lembrava de impressões e acontecimentos que tinham ficado pra trás. Acontecia frequentemente de eu sair pra comprar uma couve, ou um filé que faltavam para o almoço, e avistá-lo no corredor de produtos lácticos. Era ali que ficavam também os ovos. Era possível avistá-lo em outros corredores, por exemplo o de bolachas, farinha, açucar. Ou o corredor de café, chá e produtos do café da manhã, mel, geléia, chocolate em pó, cereais. Mas cruzando com ele ao longo dos anos me veio esta certeza que o seu produto predileto eram os ovos. Não sei se tanto o produto, ou mais a embalagem. Muitas vezes devia ter sido expulso de supermercados e lojas de conveniência, ou ouvido reclamações dos clientes. Porque diferentemente das outras coisas, não se contentava apenas em alinhar as embalagens. Ele tocava os ovos, punha-os numa certa disposição, como se tivessem olhos e olhassem todos na mesma direção. Aquilo não tinha importância, ninguém comia a casca do ovo. Mas as pessoas não gostavam, de repente lembravam que lhes faltava papel higiênico, ou detergente, do outro lado da loja. Eu, ao contrário, tinha certa fascinação. Me dava a impressão que, como as galinhas se a oportunidade lhes tivesse sido oferecida, acalantava os pintinhos inexistentes. Fechava-os cuidadosamente no escuro do papelão, para que ficassem apertadinhos e contidos. Depois recolocava uma caixa em cima da outra, separando as de seis e doze ovos em pilhas diferentes, a abertura virada para o mesmo lado. À medida em que avançava no trabalho, seguia sua conversa infinita, e no momento em que dava um passo para trás, talvez admirasse o feito e fizesse um comentário sobre a continuidade perfeita da linha desenhada na primeira caixa, que seguia caixa abaixo, da primeira à última.

Conversando com uma vizinha, descobri que ele vivia no bairro há muito mais tempo do que eu. Que perambulava pelas prateleiras dos supermercados antes mesmo da abertura da estação de metrô, que tornara o lugar mais atrativo e populoso, há mais de vinte anos. Que nunca o tinha visto com uma suposta filha, ou irmã. Que até onde lembrava, tinha usado a mesma calça e paletó, ou bem mudas de roupa do mesmo modelo e mesma cor. “Está sempre arrumado” eu disse. “De fato”, ela me respondeu. Que nunca o tinha visto comprar nada, nem entrar por nenhuma porta, a não ser a dos supermercados.  Dentre todos os mistérios, apenas um me incomodava particularmente: quem tinha decidido lhe cortar os cabelos daquele jeito, tão rente?  


Melancolia

Segundo o escritor espanhol Javier Cercas toda história se estrutura sobre uma questão fundamental, ainda que ela não seja explícita. Talvez a melancolia seja o momento em que essa questão essencial sobre a qual estruturamos a nossa existência, e organizamos a nossa versão dos acontecimentos num enredo próprio, não faz mais sentido. O momento em que percebemos que essa questão não necessariamente deveria nos definir, ou quando ela simplesmente perde a pertinência. Isso implica numa desestruturação da individualidade, porque a história que nos define, nossa ficção pessoal, já não pode mais ser contada do jeito em que a vínhamos contando. Quebramos o pacto, e os fatos se espalham pelo assoalho num silêncio estranho.


11 septembre 2023

Vestígio do tempo

Um dia, atravessando uma estrada arborizada, de asfalto liso feito pista de avião, dei pela falta da garrafa térmica. Dentro do carro, entre o condutor e o passageiro, dois porta-copos comportavam uma espécie de imitação de um café americano famoso, feitos de plástico. Inúmeras vezes bocas tinham sido queimadas com o líquido quente que saía do buraquinho. Mas nada de respingos.

Naquela época cada garrafa térmica tinha sua particularidade: algumas gordas, algumas altas, com torneira, com bico retratável, ou feitas simplesmente com uma tampa em rosca. Tomar um café na estrada implicava necessariamente movimentos cuidadosos, e sobretudo a interação entre o condutor e o co-piloto. Um servia o café, o outro recuperava a xícara de plástico com cuidado. A fumava subia, o cheiro do café tomava o carro.

Mas a garrafa térmica, como inúmeros outros objetos produzidos no começo do século XX, não correspondiam à fúria consumista do périodo futuro. Um “cup” individual representa, num só carro, três objetos a mais do que uma garrafa térmica. O pequeno porém é o lugar para colocá-los no carro, às vezes feitos de apenas dois porta-copos. Mas aí está a sacada: quatro “cups” dão lugar à novas opções, um porta copos trazeiro, um em cada porta, ou até mesmo seis lugares entre o piloto e os passageiros, em se tratando desses carros imensos que ocupam a metade da rua quando estacionados.

Nesse futuro desmedido a garrafa térmica não tinha a menor chance.    


10 juillet 2023

O quadro

De dentro do ônibus, o contorno do vidro imprimia um quadro no céu. Não havia uma só nuvem. Apenas um ponto distante destoava do azul. Parecia parado, apesar de não flutuar. Se mantinha suspenso no ar à custa de algum esforço. De quando em quando batia rapidamente as asas. Depois, como se a força do movimento alimentasse um dínamo, tornava-se de novo um ponto imóvel no céu. Assim como, na água, batemos pernas e braços evitando o afogamento.

As águias agem dessa maneira quando avistam uma presa. Antes de mergulharem para alcançá-la, observam-na distantes, alto no céu o suficiente para passarem desapercebidas. Mas aquele passarinho definitivamente não era uma águia. O ônibus avançava lentamente, misturado aos outros motores. De certo não avistava presa alguma, pelo menos não dessas presas que lhe convém. E no entanto, ali se mantinha, um ponto fixo e em movimento.

Dava a impressão que o tinham cravado no céu. Não podia tomar outro rumo. Solitário, se dobrava à existência, tentando alguma estabilidade.

O que bem podia observar do alto?

Talvez uma pessoa que olhava o céu, enquadrada pela janela do ônibus, procurando por alguma instabilidade.


17 juin 2023

Histórias do metrô

Conversa no metrô : a mulher contava que estava prestes a tomar a direção de uma pequena estrutura, e o seu interlocutor só dizia “hum, hum”. Nem esperava que acabasse a frase e “hum, hum, hum”. Tanto, que a palavra que deveria servir como um sinal que levava em consideração o que a mulher dizia tinha se tornado poluição sonora. Num dado momento a mulher fez uma pausa, sem saber se valia a pena o esforço. Mas o homem também calou-se, e como o silêncio requer alguma intimidade, a mulher retomou sua história, e o homem “hum hum”.  


Padaria

Hoje de manhã esquentei o pão no aparelho de misto quente. E como não se tratava do pão que temos o hábito de comprar, mas um pão de forma menor e mais branco, chamado “pão americano”, o cheiro do pão torrado misturado ao do café subindo pela cafeteira italiana me lembrou o Brasil. Mais precisamente, a padaria. Não era só a mistura dos dois cheiros, mas a sensação do dia quente entrando pela janela aberta. Talvez o pão americano tivesse mais açucar (penso isso porque se chama “americano”), e por isso o cheiro dele, torrado, fosse o mesmo que o cheiro do pão francês na chapa (chamado assim, ainda que provavelmente tenha a mesma quantidade de açucar). Faltava o barulho da louça batendo uma na outra, o burburinho que vem não se sabe da onde, o rádio e ou a tevê ligados, o arrancar do motor do ônibus, o céu já um pouco escuro de chuva, ou talvez seja a fumaça, ou o azulejo da padaria que é escuro, mas agradavelmente, porque quando se vive num país ensolarado, carecemos de sombra. Faltava também o vai-e-vem dos garçons atrás do balcão, e as palavras incompreensíveis que gritam quando fazem pedidos. E também o excesso de produtos, salames pendurados por fios, panetones industrializados, maionese Helmans, latas de leite condensado e chocolate em pó, fermento, e a vitrine cheia de pães, bolos, frios, salgadinhos, docinhos e sobremesas extremamente rosas ou amarelas. Também as frutas, abacaxis, maracujás para sucos e batidas, bananas, mamão e muita laranja. Porque não há padaria verdadeira sem o barulho do espremedor de laranjas. Também tem sacos e sacos de limão espalhados pelo estabelecimento. Estes sim, somente para caipirinhas, porque muito dificilmente alguém vai pedir limonada. E as garrafas de 51 que estão em algum lugar, talvez até mesmo aparentes, mas invisíveis aos olhos matinais, sobretudo com a mistura do cheiro de café e pão na chapa. E o dia, certamente quente, mas ainda agradável e com alguma promessa.     


03 avril 2023

Filamento

Estava parado, porque três vezes tinha tido a possibilidade de entrar num vagão, e não o fez. Tentou percebê-lo sem se mexer, mas a pessoa se punha uns centímetros para trás. “Propositalmente”, pensou. Continuou sua atividade, não podia fazer muito, mas se preparou.

Puxava o fio com o dedo indicador. Não era realmente puxar, mas empurrar o fio. Tudo dependia da tensão que conseguía criar entre o novelo, o fio que passava pelas costas e o movimento das agulhas. E claro, o dedo indicador. Parecia tecer uma roupa de criança, mas as cores eram discrepantes, um azul turquesa misturado com laranja. Seria possível que tivesse novelos de outras cores numa das três sacolas? Também a forma era misteriosa, mas isso é comum, toda pessoa que tricota sabe que as mais estranhas formas podem resultar numa bela peça. Em nada lhe encomodava o vai e vem dos passageiros. Quando o metrô demorava um pouco mais, e o corredor ia se enchendo, apenas puxava as sacolas para si. Ou, quando a vista ficava cansada, levantava a cabeça uns instantes para observar os belos cortes e casacos de lã. Iam, frescos, ao trabalho. A fricção dos panos e o barulho dos sapatos ocupavam o espaço. As portas se fechavam com força, no sinal estridente. O azul aos poucos foi ficando mais aparente, mas a forma seguia misteriosa. Às vezes acontecia do seu olhar ir um pouco mais além, e então era como se visse o que já não estava mais em lugar algum.

O que lhe desagradava eram esses corpos que paravam ao seu lado. Eram insistentes, curiosos. Lhe acuavam como se a fechassem numa bolha. Tinha encontrado solução para alguns problemas como o desconforto das cadeiras de plástico, ou o peso de seus pertences. Mas quando atardavam o olhar, seu cabelo se tornava mais emaranhado, seus sapatos mais sujos, percebia o próprio cheiro. Sempre tinha preferido o movimento à inércia.

Acontecia de falarem com ela. Não os ignorava, não suportavam que pessoas na sua situação não lhe dessem ouvidos. Mas não respondia. Apenas exibia um sorriso, sem mostrar os dentes. “Onde estão seus familiares? Não é possível que não tenha ninguém!”. “Se a senhora se esforçar, Deus virá em seu socorro, mas deve ter a fé verdadeira. Ele nos põe à prova”. “Já procurou a Cruz Vermelha?”. “O melhor que tem a fazer é conseguir um emprego, não pode ficar esperando que as coisas aconteçam”. Contentava-se em balançar a cabeça numa afirmação, até que num dado momento, sem contrapartida, acabavam indo embora.

- Desculpe atrapalhar. Pode me dizer o nome do ponto?

Dessa vez, virou a cabeça. A voz soou grave. Era um homem de terno, cabelo ralo, segurava uma maleta preta.

- Desculpe. Gostaria apenas de saber que ponto usa.

- Ponto arroz.

Disse isso alto, porque o homem falava baixo.

- Pode fazer mais devagar? Se encomoda se eu observar?

- Sabe tricotar?

O homem se inclinou, mas não saiu do lugar.   

- Só ponto meia. Foi o meu terapeuta que indicou, para remediar a angústia.

Retomou as agulhas, e se concentrou em fazer grandes e lentos movimentos com o fio e o dedo indicador.


Cadarços

Andava a poucos passos à minha frente, eu logo a percebi, porque as pontas de seus longos cadarços faziam um barulho quando batiam no chão. Eram de cor vinho, enlaçados num par de tênis de couro. Dançavam. Iam para o alto e para os lados, sem respeitar nenhuma regra aparente. Pareciam participar de alguma comemoração. Logo me afligi. Andava decidida, e rapidamente. De tamanho desproporcional, os fios aumentavam as chances da mulher pisar num deles com o pé oposto. Não havia outra saída para a situação, toda a energia que usava para se movimentar participaria à violência da queda.

Mas como era possível que andasse tão certamente sem perceber que estavam desfeitos? Olhava para o alto, sem tempo a perder. No entanto a situação era clara : dali a muito pouco ocorreria o inevitável. E ainda assim, se não prestássemos atenção nos seus pés, a mulher parecia intocável. Uma dessas pessoas que não se submete a destino algum. Tive ganas de avisá-la “olhe bem, as coisas não são assim. Cedo ou tarde todos acabamos nos curvando, todos acabamos cedendo. O melhor que tem a fazer é suavizar a queda”. Mas ela continuava avançando.

Quando finalemente decidi abordá-la, já estava longe. Me surpreendi com a distância entre nós duas, e com o fato de ainda estar de pé. Os cadarços tinham se tornado invisíveis. Fiquei para trás da catraca, a admirar o feito.     

03 mars 2023

Exéquias

Ouvia as palavras pronunciadas num rítimo pausado, respeituoso. Vía-se que o padre não tinha conhecido o morto pessoalmente. Alguém da familia lhe fornecera elementos. As palavras não traduziam a imagem que fazia do homem, mas nunca conhecemos realmente um colega. No dia à dia são apenas algumas generosidades e viéses que se entrechocam no espaço de um escritório. Havia convidados o suficiente. Tinha se mudado para a cidade ainda jóvem, gostava de cozinhar, e de voltar ao buraco de onde tinha saído. Acompanhara a longa internação da mãe (suspiros). Tocava gaita. Perspicaz, tinha tido um pequeno sucesso financeiro, e asssim deixava o futuro próximo da viúva garantido (soluços e pessoas assoando o nariz). Ainda ouviu “afável”, e “lamentavelmente”, mas a voz do padre era entorpecente. Começou a pensar no momento em que seria ele no caixão. Na imagem que os colegas guardariam dele, e o que os surpreenderia, se viéssem. Descobrir que ele colecionava livros sobre taxidermia? Contou as pessoas que conhecia. Se morresse dali uns vinte anos, era possível que perdesse boa parte dos contatos. Por outro lado, pensando nisso agora, ainda lhe sobrava tempo suficiente para entreter algumas relações e garantir metade da audiência. Se começasse o saxofone nos próximos meses poderiam dizer dele “um músico”, ou se menos, “um homem que apreciou a música”. No final da cerimônia tentaria abordar o padre. Tinha certo talento para a escrita, poderia deixar um texto lavrado em cartório? Nenhuma palavra sobre jardinagem, ou viagens ao estrangeiro. E ainda que fossem esses seus verdadeiros passatempos, quem poderia dizê-lo?

As pessoas se levantaram e começaram a se dirigir lentamente para a saída. Ele fez o mesmo, e ao dar uma última olhada no caixão sentiu-se grato. Se aproximou da família com um sorriso inadequado no rosto. Afinal, depois de cinquenta e quatro anos, tinha encontrado um propósito na vida.