01 mars 2013

Lucubração ordinaria


Uma antiga questão permeia o pensamento daqueles que passam o tempo a elucubrar sobre considerações certamente consistentes, mais altamente ineficazes nessa nossa realidade virtuosa e virtual. Por vezes ela não passa de sensação furtiva, e não chega a constituir um pensamento encorpado. Mas de quando em quando ela encarna um cruzamento, ilustrado pela seguinte combinação de palavras : são os componentes da realidade detentores de uma essência, ou é a alma da gente que cobre tudo aquilo que contempla com tafetá ou com véu de luto ? Onde a graça tem a sua morada ? Desde ontem alguns pequenos acontecimentos, consecutivos, me fazem pensar que o essencialismo é a maneira através da qual a alma objetiva as próprias sensações, tornando-as « naturais ». Dizemos daquilo que gostaríamos que fosse uma ilustração da Verdade, que ele é parte de algo imutável, e independente da transitoriedade humana. No entanto, momentos tênues e consecutivos, concentrados no espaço de um dia, nos fazem perceber que a poesia mora nos nossos olhos, e emerge de acordo com o nosso estado de espírito. Um dia é um curto lapso de tempo ; não há possibilidade que ele abarque quatro, cinco momentos tênues (sutis, poéticos, sinceros). O primeiro, um marido : não gostou de ganhar um pijama, porque se o vestisse, perderia a pose de homem. Renunciava ao conforto de uma roupa quente e elástica, que deslizaria dentro dos lençóis, permitindo os mais doces sonhos. Tudo para não perder a imagem sexual que podia oferecer aos olhos da mulher. O segundo foi um filho : dizendo em voz alta, no meio da rua, que amava a mãe. Não ligava para o fato de usar o próprio timbre de maneira desmedida, nem para o peso das palavras… Queria simplesmente e inocentemente exprimir aquilo que sentia naquele momento exato. Aquilo que lhe assaltava o peito de maneira inesperada, porque momentos antes brincava com os próprios pés enquanto corria. O terceiro momento, o dentista : contou, como se não tivesse importância, que provocar a dor com as próprias mãos lhe parecia uma sensação inpensável e insuportável. Inconcebível. O quarto, uma senhora ; três dias depois da festa dos namorados seguia com um buquê de flores na mão, e uma cestinha de papel da padaria, um mil folhas e um Paris-Brest dentro. Os doces preferidos do senhor, que voltava de viagem naquela noite. O quinto momento : o momento fundamental que faz com que a graça da realidade imane de cada um. O vento fresco da noite batendo no rosto, o movimento dos membros, livres… O discernimento, a imaginação, a empatia, o imenso sentimento de pertencer, se não ao todo, àquilo que toca o ordinário, e ao mesmo tempo o metafísico.      

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