Há alguns meses uma preocupação nova ocupa o meu espírito. Porque a existência parece ser pontuada por essas questões que nos assaltam, sem interlúdio. No começo são pequenas reflexões. A sombra passageira de uma idéia. Em seguida ganham espessura, como uma nuvem que cresce em dia de vendaval. Logo aquela impressão passageira se transforma em uma questão insistente. Assim parece ser o desenrolar da existência. Assim foi que surgiu para mim essa preocupação.
Não se sabe à que parece a própria imagem quando se anda na rua. Quando, parada, esperando o ônibus, com os braços cruzados, lendo um livro ou ouvindo música, alguém passa e percebe essa pessoa, parada, esperando o ônibus, com os braços cruzados lendo um livro ou ouvindo música. Apenas o reflexo de si, revelado pelo vidro de um carro, por um pedaço de espelho, proporciona o vislumbre dessa existência. Mas não é dessa imagem visual presente na realidade que a minha inquietação se alimenta. Me preocupo com uma imagem diferente. Quando passo na frente dessas pessoas que esperam o ônibus; quando paro do lado deste senhor que compra o jornal; quando, na fila do cinema, precedo o casal de adolescentes... que odor lhes vêm às narinas? Que cheiro sentem quando as circunstâncias da realidade nos põe lado à lado? O que emana de mim, de minha presença, quando atravesso a rua, o caminho de alguém, o sono de um gato?
Me atenho ao que sinto dos outros. De manhã a mulher atravessa a rua correndo para alcançar o trem que logo entrará na estação. Uma fragância trabalhada, uma fineza artificial. O instante que o odor leva para percorrer o espaço que nos separa é suficiente para que uma imagem dela se imprima em meu espírito. Assim acontece com todas as coisas e pessoas. O cheiro de banho espalhado pela brisa fria da primeira hora. O cheiro dos troncos das árvores. O cheiro de essência de amêndoas. Uma criança passa, e apesar do cheiro pouco insistente do sabão, nada se forma em mim. Aquilo que emana de uma presença talvez necessite consistência existencial. Logo que nascemos não somos mais do que cheiro de leite. Aos poucos, à medida em que a alma se instaura na realidade, nosso cheiro se define. Uma suspeita de acidez, causada pelo amargor. Um sussurro de lavanda ou erva-doce, insinuados pela sutileza da alma. Uma parte insistente de suor do cotidiano. O odor âcre da lenta e inexorável decomposição.
É assim, segundo a vivência de cada um, a maneira como constróem o próprio personagem, como emergem da própria individualidade aceitando ou rejeitando o próximo, como se contrapõem ao tempo, às estações, ou se deixam padecer sem nem perceber o passar dos anos, como entendem ou negam a morte, e dada a escala do universo, a insignificância de uma vida. Assim se forma um odor específico à cada um, a mistura daquilo que se vive, e como se vive. Uma fragância pessoal que traduz o significado que se dá à existência. Uma imagem mais nítida e íntima de cada alma.
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