08 septembre 2016

Alma penada

Essa noite sonhei que você estava bem alí, ao meu lado, gelado como um cadáver. Magro e branco. E ainda assim se agarrava em mim, segurava o meu braço. E o mais extraordinário : aquilo me agradava. Uma mulher tentava, de maneira sutil mas com empenho, puxar-te para longe. E como o seu esforço não surtia efeito, abraçou-nos os dois, e disse algo como “ah! A sua querida...”. Talvez o sonho seja um indício : logo mais esse sentimento (circular, de consistência densa e macia, inteiriço) desaparecerá. Poderemos enterrá-lo. Mas até lá, quase não explico a mim mesma o sentimento de plenitude que o seu braço, ainda que frio, fraco e branco em demasia, provocou em mim.
Toda vez que me surge, antes em carne e osso, hoje numa visão, você é assombração.
A mim me parece que a nossa vida é feita dessa procura incessante pelo mistério. Alcançar aquilo que não conhecemos (sem cheiro, sem corpo, sem voz), tocar, ainda que de maneira breve, aquilo que não nos foi revelado. Procuramos almas invisíveis. Uma existência pressentida, e no entanto ignorada... Talvez, depois da morte, outras vidas. Talvez uma razão. Uma evolução, uma luz, uma plenitude, uma imensidão qualquer. Mas talvez (e muito provavelmente) apenas uma distração.
Quando em vida, você era um mistério para mim. Por mais que quisesse me aproximar da Humanidade, entender outrem, não desvendava as suas razões. Um dia sim, um dia não. Um dia noite, um dia dia. Um dia meu, um dia d’outras. Um dia aqui, um dia lá. Seus movimentos me davam náuseas do alto mar. Eu, pequeno ponto na tempestade. O céu carregava-se de nimbos, que antes mesmo de desaguarem feito tromba, pareciam formar um panorama revolucionário.
Nós, aqui, ocupando todo o espaço, alinhavados em problemas e esperanças. Contamos o tempo, separamos os períodos, classificamos os acontecimentos... mas nada de escutar um sinal vindo de outro lugar. Apesar de todo zumbido, o silêncio abissal do que nos circunda.
Se eu fecho os olhos bem forte, se me concentro, se a evidência pedante da realidade me concede o tempo de um suspiro; se todas essas condições se reúnem ao vaga-lume presente na alma, consigo quase te tocar. Um, dois, três... volto a sentir os olhos fechados, as pálpebras pesadas e presentes. Aperto os olhos, quero estar neste “algum lugar”. Desiludo. Durante o dia uma coisa e outra ainda suscitam a sua imagem, mas o que prevalece (assim como numa dinâmica mais abrangente: o universo, a termodinâmica, o destino de todo pedaço vivo de matéria) é a frieza do que a morte embala.
Parece que de nada servem nossos enormes telescópios, robos teleguiados, missões espaciais. Por vezes um fato torna-se um começo de alguma coisa (luzes estranhas, uma frequência, a sombra de uma foto...). Mas a coisa sempre acaba por se transformar em história. O silêncio do espaço cai sob nossos ombros. Abáfa-nos.  Excessivo, o manto da solidão. Nascemos de uma coincidência tão insignificante, sem ganas de reproduzir-se. Exigimos uma explicação. Mas ela não vem, ou não existe. Sobre a vida (e o seu fim) nem sombra de uma mínima razão.
Existe o conhecido, e o outro lado. Na maior parte do tempo me contenho nesse espaço denominado realidade. Mas ocorre, algumas vezes, de eu ter a sensação de outro lugar. Um sem nome. Impossível. Enquanto resultado de uma coincidência insignificante, me abstenho. E no entanto, persiste em mim a fissura, como uma passagem secreta na qual eu mesma poderia me abismar. Quem sabe não é aí que você mora agora?       

Aucun commentaire: