Durante muito tempo tomei este carma por
uma maldição. Algo que imprimiria, invariavelmente, um tanto de oposição na
minha existência. É próprio da alienação uma espécie de inadaptação. À tudo o
que nos rodeia. Às paredes, aos costumes, até mesmo à meteorologia. Estar em
algum lugar sem colar-se ao pano de fundo. Nunca deixar-se estar. Nunca sentar
na varanda, olhando a paisagem, tomando um refresco. Nunca sentir-se no lugar
certo, no bom momento. E porque tinha a qualidade de carma, este apartar-se
seria recorrente. Eu poderia mudar do oito ao oitenta, nenhum dos pontos que
percorreria me traria mais conforto do que o anterior. Mas para minha surpresa,
descobri há pouco tempo que tal oposição, decorrente de um desapego permanente,
não estava fadada a ser necessariamente negativa. O incorforto tem as suas
vantagens. Faz com que mudemos constantemente de posição. Tive a impressão, num
dado momento, que o fato de não me ajeitar em lugar algum passou a desenhar o
meu contorno. E quando, à noite, antes do sono, deixo o pensamento livre para
fazer o caminho que bem entende, às vezes me vem à cabeça partes da minha
trajetória descomposta. A única coisa que une estes pequenos pontos espalhados
pelo espaço é o meu pensamento, e os sentimentos que guardo deles, dando-lhes
um papel numa história. Se eu fosse um fugitivo, e que traçassem as minhas
dispersões num mapa, com pequenos alfinetes de cabeças coloridas, procurariam
indícios da minha passagem. Mas quais são os vestígios que deixei em cada lugar
em que estive, nas pessoas com quem me relacionei?
Uma mulher, empregada no supermercado :
“sim, lembro-me bem de sua feição. Foi afável. Comprou uma lata de ervilhas.
Usava um pulôver creme, feito à mão”. Uma amante : “só guardei mágoas, e um ou
dois presentes... bugigangas, coisas sem importância. Mas sabe como é, quando
olho para estes objetos é como se estivesse presente”. O segurança da estação
de trem : “Talvez... não estou certo. Por aqui passa tanta gente. Acontece que
de ficar a observar o vai e vem, eu acabo desvendando uns mistérios. Aquele que
anda alí, por exemplo... sempre achei que esperava pela namorada. Fica uns
vinte minuto nessa mesma plataforma, todos os dias úteis. Talvez também venha
nos fins de semana, não posso dizer, não sou eu que cubro os sábados e domingos,
graças à Deus. Depois vai embora. Parece até que perdeu alguém, e que só pode
reencontrá-lo aqui. Finalmente... não, esta foto não me diz nada. Deve ter sido
um destes que se confundem na massa”. O cachorro, vira-lata, morador do ponto
de ônibus abandonado, porque ficava numa rua de paralelepidos : “cheirava
queijo coalho com geléia de mocotó, mas nunca comia coentro nem leite de coco.
Também tinha cheiro de velho. Não como uma pessoa de idade... mais como uma
roupa velha, ou um livro de sebo. Sempre me fazia umas cócegas atrás da
orelha”. Uma professora : “tinha facilidades com línguas estrangeiras, e
preferência acentuada pelas abstrações”. A própria mãe : “ menino quieto.
Nasceu tão silencioso que quase não percebi que tinha nascido. Depois caiu no
mundo. Desgosto”.
Pequenos pontos imperceptíveis,
insignificantes, espalhados pelo espaço. Indícios de uma
história. Aí estou eu.
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