17 octobre 2017

Andarilho

Durante muito tempo tomei este carma por uma maldição. Algo que imprimiria, invariavelmente, um tanto de oposição na minha existência. É próprio da alienação uma espécie de inadaptação. À tudo o que nos rodeia. Às paredes, aos costumes, até mesmo à meteorologia. Estar em algum lugar sem colar-se ao pano de fundo. Nunca deixar-se estar. Nunca sentar na varanda, olhando a paisagem, tomando um refresco. Nunca sentir-se no lugar certo, no bom momento. E porque tinha a qualidade de carma, este apartar-se seria recorrente. Eu poderia mudar do oito ao oitenta, nenhum dos pontos que percorreria me traria mais conforto do que o anterior. Mas para minha surpresa, descobri há pouco tempo que tal oposição, decorrente de um desapego permanente, não estava fadada a ser necessariamente negativa. O incorforto tem as suas vantagens. Faz com que mudemos constantemente de posição. Tive a impressão, num dado momento, que o fato de não me ajeitar em lugar algum passou a desenhar o meu contorno. E quando, à noite, antes do sono, deixo o pensamento livre para fazer o caminho que bem entende, às vezes me vem à cabeça partes da minha trajetória descomposta. A única coisa que une estes pequenos pontos espalhados pelo espaço é o meu pensamento, e os sentimentos que guardo deles, dando-lhes um papel numa história. Se eu fosse um fugitivo, e que traçassem as minhas dispersões num mapa, com pequenos alfinetes de cabeças coloridas, procurariam indícios da minha passagem. Mas quais são os vestígios que deixei em cada lugar em que estive, nas pessoas com quem me relacionei?
Uma mulher, empregada no supermercado : “sim, lembro-me bem de sua feição. Foi afável. Comprou uma lata de ervilhas. Usava um pulôver creme, feito à mão”. Uma amante : “só guardei mágoas, e um ou dois presentes... bugigangas, coisas sem importância. Mas sabe como é, quando olho para estes objetos é como se estivesse presente”. O segurança da estação de trem : “Talvez... não estou certo. Por aqui passa tanta gente. Acontece que de ficar a observar o vai e vem, eu acabo desvendando uns mistérios. Aquele que anda alí, por exemplo... sempre achei que esperava pela namorada. Fica uns vinte minuto nessa mesma plataforma, todos os dias úteis. Talvez também venha nos fins de semana, não posso dizer, não sou eu que cubro os sábados e domingos, graças à Deus. Depois vai embora. Parece até que perdeu alguém, e que só pode reencontrá-lo aqui. Finalmente... não, esta foto não me diz nada. Deve ter sido um destes que se confundem na massa”. O cachorro, vira-lata, morador do ponto de ônibus abandonado, porque ficava numa rua de paralelepidos : “cheirava queijo coalho com geléia de mocotó, mas nunca comia coentro nem leite de coco. Também tinha cheiro de velho. Não como uma pessoa de idade... mais como uma roupa velha, ou um livro de sebo. Sempre me fazia umas cócegas atrás da orelha”. Uma professora : “tinha facilidades com línguas estrangeiras, e preferência acentuada pelas abstrações”. A própria mãe : “ menino quieto. Nasceu tão silencioso que quase não percebi que tinha nascido. Depois caiu no mundo. Desgosto”.
Pequenos pontos imperceptíveis, insignificantes, espalhados pelo espaço. Indícios de uma história. Aí estou eu.         


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