Clarice. Me pergunto quantos são aqueles que realmente
te entendem. Que te lêem como eu. Aqueles que conseguem ter acesso ao universo
de Clarice. Eu sim. Eu adoro Clarice. Eu reivindico Clarice. É bonito falar em
Clarice. É inteligente, intelectual. Todo mundo fala de Clarice. Mas de
“Clarice”, assim, sem sobrenome, apenas os mais chegados. Aqueles que sabem que
Clarice não é para qualquer um. Tem que ser iniciado, para entender os escritos
de Clarice. Todo o seu mistério. Próximo, íntimo. Para poder discorrer sobre o
conteúdo hermético, algo europeu de Clarice, é preciso tempo. Paciência. Não é
para o primeiro estudante de Letras que acabou de tirar os olhos dos livros
obrigatórios do vestibular. Tem que ter vivido para captar Clarice. Sobre o que
fala Clarice? (hum... em duas linhas, devo resumir Clarice...). “Clarice
expressa a metafísica da existência através da contingência; trata do
despropósito ontológico do indivíduo arraigado na efemeridade”. Claro, Clarice
é literatura, e toda literatura é feita para um leitor. Mas existe literatura e
literatura. Cada um deve questionar a si próprio, de maneira sincera : “Clarice
é para mim?”. Talvez não seja o caso. Porque Clarice é para poucos. E por essa
razão, e porque sou um destes poucos, posso dizer “Clarice”, assim, sem
sobrenome.
De certo existe uma pequena angústia. Um qualquer
coisa de errado, quando leio Clarice. Nada que venha manchar o monumento. Tanto
mistério. Tanta erudição. Como se as palavras lhe aparececem feito tromba
d’água. Em termos literatos não há dúvidas. Mas quando penso naquela mulher,
Joana, dizendo aquelas coisas... Que coisas! Nem na boca de um personagem!
Joana me põe desconfortável. Me seguro em Clarice, na sua obra, na sua
elegância. Mas Joana me persegue. Que desagrado. “A distância que separa os
sentimentos das palavras. Já pensei nisso. E o mais curioso é que no momento em
que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto se transforma
lentamente no que digo...”. Como pode? Gosto do mistério de Clarice, quando o
compreendo. Quando se encaixa nas gavetas da minha alma. Joana não se encaixa
em lugar algum. Talvez Joana seja realmente aquilo que dizia dela a sua tia...
“A plenitude tournou-se dolorosa e pesada, e Joana era
uma nuvem prestes a chover”. Que não venham os noviços (leigos, estudantes
imprudentes, pseudo-críticos, ignaros de Clarice) justificar um tal personagem.
Que não me digam “você não entende o que é um coração selvagem? Fire, walk with
me...”. Eu conheço Clarice! Sou íntimo de Clarice, de seus recantos, posso
chamá-la pelo nome. Não há nada a acrescentar ao que me diz Clarice...
“Desde aquele dia, Joana sentia as vozes,
compreendia-as ou não as compreendia. Provavelmente no fim da vida, a cada
timbre ouvido, uma onda de lembranças próprias subiria até a sua memória, ela
diria : “quantas vozes eu tive...”. Um pensamento me vem à cabeça. Uma faísca
queima lentamente a minha admiração. Algo insuspeito, insidioso. De repente me
aparece claro feito raio. Não a minha Clarice... Aquela que cito quando,
erudito, me escuto e me orgulho das minhas próprias palavras. Aquela que apenas
alguns, escolhidos, iniciados, podem chamar pelo nome. Aquela que me envolve no
mistério da literatura... Será possível que Joana? Essa mulher indecente, de pensamento
obsceno, uma voz de Clarice.
Clarice já foi minha. Me gabei de Clarice, como se
tudo aquilo que escreveu fosse um pouco meu. Como se o seu mistério pudesse me
tornar mais interessante, mais presente, mais importante. Eu existi através de
Clarice. Mas Joana me é desconhecida. Um pedaço de Clarice, indomável. Deixo
Lispector aos demais, morro um pouco na minha insignificância.
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