04 septembre 2013

Vazão e liberdade – epílogo de meu avô-orquídea


De um dia para o outro, sem motivo aparente, as folhas que antes se impunham, majestuosas, começaram a amarelar. Logo lembrei da barba branca do meu avô, que um dia também havia mudado de cor. Assim como sua pele, e o branco dos seus olhos. Uma a uma, as dezoito flores magenta murcharam. Pendiam, cabisbaixas, em seus pequenos galhos. Curiosamente esse acontecimento foi acompanhado da chegada do verão. Durante o tempo em que meu avô-orquídea pareceu mais se comprazer em estar alí, quando suas cores e formas se uniam numa harmonia evidente, eu o via perto da janela a espiar o lado de fora. Isso foi no outono, e os dias tornavam-se cada vez mais curtos, o céu cada vez mais baixo, como se fosse nos esmagar o peso da tristeza. Mais de uma vez pensei : « o que o alimenta ? Da onde tira esse brilho que o faz destoar de tudo em volta ? ». Meu avô-orquídea, observando os dias frios, era como uma pérola afogada na imensidão do mar. De mais a mais meu avô estava morto, ainda que descansando temporariamente numa planta. A beleza, essa maneira de existir destoando da tristeza do outono e da sua condição de morto me fazia admirar meu avô, e a vida em geral. Porque mesmo nas situações mais precárias, nos sentimentos mais rudes, nascia sempre uma suspeita de esperança. Como uma maneira sútil de falar de algo mais, algo exterior, algo além.

Hoje era tudo em torno que brilhava, e ele que secava. Passei um tempo entristecida, pensando se meu avô tinha se sentido ofendido : muita água, muita luz, pouca atenção, poucos acontecimentos para olhar pela janela, visto que nestes meses quentes a cidade se esvaziava… Uma outra hipótese surgiu quase como uma revelação : talvez o meu avô-orquídea tivesse atingido uma espécie de auge. A planta, e o meu avô morto, os dois juntos, não poderiam dar mais do que aquela deslumbrante situação, como uma espécie de limite da transcendência. (Se é que é possivel usar a palavra « limite » e « transcendência » numa mesma frase). O espírito de meu avô e a orquídea se separaram ; um movimentando-se de forma aérea em busca de outra morada. A outra sendo apenas planta, até que um novo encontro extraordinário aparecesse em seu caminho. As vezes me pergunto o que aconteceu com o meu avô. Para onde foi ? A orquídea continua perto da janela. Mas a sua única flor voltou-se para dentro, como se dissesse « sou apenas uma flor, nada do que acontece nesse mundo me importa ».    

 

Aucun commentaire: