Por duas vezes a morte
veio se entrepôr em meu caminho nestes últimos dias. E ainda que de maneira
indireta, sem nenhuma consequência, tristeza ou amargor no que me toca, sua
aparição furtiva me fez pensar que uma existência tem curta duração, ainda que dure
vinte, trinta, cinquenta anos... O que é um ano além de duas ou três
lembranças? Nada parece diferenciar um período do outro, se um acontecimento
extraordinário não vem pontuar a existência. Já não guardo na memória aquilo
que vivi, de maneira distinta. Apenas entreponho ocorridos num canto qualquer
da alma. Há medida em que o tempo passa, a vida vai se tornando turva.
Sua primeira aparição se
deu na estrada. Ao passar do lado da moto, deitada, e dos carros de bombeiro e
polícia, foi como se o corpo estendido debaixo do lençol branco, imaculado,
tentasse desesperadamente chamar a atenção daqueles que passavam ao seu lado.
Uns minutos antes, no posto da estrada, estes mesmos motoristas que agora lhe
deixavam para trás poderiam ter cruzado o seu caminho, sentido a sua presença. Uma
consistência que se move, o calor de uma massa, a atração de um corpo quase tão
imponente quanto um planeta. Ele estava bem alí, encostado no balcão, esperando
pelo café. A última pessoa que o tinha visto em vida foi a garçonete, e se tivesse
sabido de antemão o sucedido, ela lhe teria segurado as mãos, como se pedisse
para ficar mais um instante. Porém, como de nada desconfiava, e que nada
saberia, a moça apenas lhe serviu o café bem preto com um pingo de leite morno.
Mas isso tinha sido há alguns minutos; o tempo
era outro. Dalí para frente o homem da moto não seria nada além de
desagregação.
Ainda naquela manhã ele
fazia a barba dizendo a si mesmo “envelheci”. Não tinha mais do que trinta e
cinco anos, mas sua pele já começara a franzir perto dos olhos, e a vida à
marcar suas expressões. Tinha cabelos claros, não se viam cabelos brancos.
Nenhum começo de calvície. No momento do acidente, mesmo que o desfecho tenha
sobrevindo de forma inesperada, o homem pode vislumbrar o instante seguinte, em
que não estaria mais entre os outros. Esperou que uma corda lhe fosse
estendida, como já tinha ouvido falar que acontece com algumas pessoas no
momento antes da morte, neste espaço misterioso “entre dois”. Teve a impressão de
que seguraria a corda, e teria força suficiente para se içar, como se um
guincho lhe retirasse custosamente da lama.
A vontade de passar a
outra coisa, sem olhar para trás seria forte. Mas o homem da moto ainda teve
alguns instantes para se convencer de que voltaria, se prendendo mais uma vez à
própria existência, como devia ter sido quando nasceu. Afinal, o intuito de uma
vida não se resumia a persistir? O fato de insistir num movimento, buscar uma
vontade, satisfazer uma necessidade?
Finalmente nenhuma corda
caiu do céu, e foi quase sem remorsos que compreendeu que a própria vida
terminaria alí, naquele instante. Ainda que por pouco, a certeza de que
seguraria a corda lhe proporcionou uma satisfação efêmera, mas de grande
importância dadas as ciscunstâncias. E depois mais nada.
A segunda aparição da
morte se deu de maneira singular. Passava pela calçada, tratava-se de um
caminho novo devido à um trabalho de vendedor que conseguira recentemente. A
cidade estava vazia, uma mistura de cenário fantasmagórico e tranquilidade
excepcional. Andava distraído por uma alameda, duas ruas antes de chegar ao
destino, quando o avistei entre a
calçada e a rua, numa poça molhada. Um passarinho preto, encolhido, parado. Percebeu a minha presença, não se mexeu. A ausência de movimento chamou
a minha atenção. Um passarinho parado é um passarinho doente ou morto. Mas foi
o seu olhar que me causou uma profunda impressão. Seus olhos pareciam apreender
algo que me era invisível e inalcançável. Parei para observá-lo me perguntando
se poderia tomar alguma providência. Na alameda vazia, apenas eu e os olhos do
passarinho em movimento. O resto fazia parte de um estagno no espaço-tempo. Seu
olhar a encarar o mistério, me dizia que temia aquilo que se preparava, mas a sua
postura demonstrava resignação. Já não havia nada a fazer.
No dia seguinte, logo da entrada da rua, avistei o corpo preto, no meio
da calçada. Senti culpa e alívio. Não sofreria mais. Porém, como se o tempo
mais uma vez se fizesse fixo, feito água suja da poça, e apesar da distância,
pude perceber que ainda vivia. A mesma postura, os mesmos olhos a espreitar.
Como se o corpo não o acompanhasse, mas a alma ainda quisesse estar presente.
Ao passarinho, ainda lhe restara força suficiente para subir na guia. Talvez
procurasse algo. Me doeu pensar que passara um dia e uma noite a temer aquilo
que tardava em acontecer. E que morreria no meio da calçada, num percurso
inacabado. Desviei o olhar, atravessei a rua. Já não havia nada a fazer.
No terceiro dia, ao atravessar a porta, meus
pés evitaram aos tropeços um volume estatelado no chão. Era o corpo de um outro
pássaro. Seus olhos estavam fechados; sua barriga
deixava à mostra tripas e orgãos. Seu corpo se impunha improvável, sinuoso, com
a cabeça virada numa posição inexistente. Dezenas de moscas verdes se
amontoavam sob sua carne, feito um cobertor.
Não tinham nada em comum.
Apenas a cor, o fato de serem pássaros, e aparecerem no meu caminho tocando a
morte. Continuei seguindo, e ao alcançar a rua onde avistara o primeiro
pássaro, receei encontrá-lo morto, sendo devorado por bichos. Fui escrutando
cada canto, cada pneu de carro, não lembrava mais o lugar exato em que o vira.
No fundo eu queria encontrá-lo. Mas nada jazia naquela alameda, nenhum sinal do
pássaro preto, nem de nenhum passante. Não conseguia dar um sentido à estes
dois corpos em meu caminho. Com a vista embaçada, decidi que entraria no
primeiro bar. Precisava de um café bem preto com um pingo de leite morno. A rua
estava vazia. Senti uma extrema solidão, e a fragilidade da vida de forma
aguda. De certo, depois do trabalho, pegaria a moto rumo ao interior; estava precisando espairecer.
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