04 septembre 2015

Turvação

Por duas vezes a morte veio se entrepôr em meu caminho nestes últimos dias. E ainda que de maneira indireta, sem nenhuma consequência, tristeza ou amargor no que me toca, sua aparição furtiva me fez pensar que uma existência tem curta duração, ainda que dure vinte, trinta, cinquenta anos... O que é um ano além de duas ou três lembranças? Nada parece diferenciar um período do outro, se um acontecimento extraordinário não vem pontuar a existência. Já não guardo na memória aquilo que vivi, de maneira distinta. Apenas entreponho ocorridos num canto qualquer da alma. Há medida em que o tempo passa, a vida vai se tornando turva.

Sua primeira aparição se deu na estrada. Ao passar do lado da moto, deitada, e dos carros de bombeiro e polícia, foi como se o corpo estendido debaixo do lençol branco, imaculado, tentasse desesperadamente chamar a atenção daqueles que passavam ao seu lado. Uns minutos antes, no posto da estrada, estes mesmos motoristas que agora lhe deixavam para trás poderiam ter cruzado o seu caminho, sentido a sua presença. Uma consistência que se move, o calor de uma massa, a atração de um corpo quase tão imponente quanto um planeta. Ele estava bem alí, encostado no balcão, esperando pelo café. A última pessoa que o tinha visto em vida foi a garçonete, e se tivesse sabido de antemão o sucedido, ela lhe teria segurado as mãos, como se pedisse para ficar mais um instante. Porém, como de nada desconfiava, e que nada saberia, a moça apenas lhe serviu o café bem preto com um pingo de leite morno. Mas isso tinha sido há alguns minutos; o tempo era outro. Dalí para frente o homem da moto não seria nada além de desagregação.
Ainda naquela manhã ele fazia a barba dizendo a si mesmo “envelheci”. Não tinha mais do que trinta e cinco anos, mas sua pele já começara a franzir perto dos olhos, e a vida à marcar suas expressões. Tinha cabelos claros, não se viam cabelos brancos. Nenhum começo de calvície. No momento do acidente, mesmo que o desfecho tenha sobrevindo de forma inesperada, o homem pode vislumbrar o instante seguinte, em que não estaria mais entre os outros. Esperou que uma corda lhe fosse estendida, como já tinha ouvido falar que acontece com algumas pessoas no momento antes da morte, neste espaço misterioso “entre dois”. Teve a impressão de que seguraria a corda, e teria força suficiente para se içar, como se um guincho lhe retirasse custosamente da lama.
A vontade de passar a outra coisa, sem olhar para trás seria forte. Mas o homem da moto ainda teve alguns instantes para se convencer de que voltaria, se prendendo mais uma vez à própria existência, como devia ter sido quando nasceu. Afinal, o intuito de uma vida não se resumia a persistir? O fato de insistir num movimento, buscar uma vontade, satisfazer uma necessidade?
Finalmente nenhuma corda caiu do céu, e foi quase sem remorsos que compreendeu que a própria vida terminaria alí, naquele instante. Ainda que por pouco, a certeza de que seguraria a corda lhe proporcionou uma satisfação efêmera, mas de grande importância dadas as ciscunstâncias. E depois mais nada.

A segunda aparição da morte se deu de maneira singular. Passava pela calçada, tratava-se de um caminho novo devido à um trabalho de vendedor que conseguira recentemente. A cidade estava vazia, uma mistura de cenário fantasmagórico e tranquilidade excepcional. Andava distraído por uma alameda, duas ruas antes de chegar ao destino, quando o avistei entre a calçada e a rua, numa poça molhada. Um passarinho preto, encolhido, parado. Percebeu a minha presença, não se mexeu. A ausência de movimento chamou a minha atenção. Um passarinho parado é um passarinho doente ou morto. Mas foi o seu olhar que me causou uma profunda impressão. Seus olhos pareciam apreender algo que me era invisível e inalcançável. Parei para observá-lo me perguntando se poderia tomar alguma providência. Na alameda vazia, apenas eu e os olhos do passarinho em movimento. O resto fazia parte de um estagno no espaço-tempo. Seu olhar a encarar o mistério, me dizia que temia aquilo que se preparava, mas a sua postura demonstrava resignação. Já não havia nada a fazer.
No dia seguinte, logo da entrada da rua, avistei o corpo preto, no meio da calçada. Senti culpa e alívio. Não sofreria mais. Porém, como se o tempo mais uma vez se fizesse fixo, feito água suja da poça, e apesar da distância, pude perceber que ainda vivia. A mesma postura, os mesmos olhos a espreitar. Como se o corpo não o acompanhasse, mas a alma ainda quisesse estar presente. Ao passarinho, ainda lhe restara força suficiente para subir na guia. Talvez procurasse algo. Me doeu pensar que passara um dia e uma noite a temer aquilo que tardava em acontecer. E que morreria no meio da calçada, num percurso inacabado. Desviei o olhar, atravessei a rua. Já não havia nada a fazer.
No terceiro dia, ao atravessar a porta, meus pés evitaram aos tropeços um volume estatelado no chão. Era o corpo de um outro pássaro. Seus olhos estavam fechados; sua barriga deixava à mostra tripas e orgãos. Seu corpo se impunha improvável, sinuoso, com a cabeça virada numa posição inexistente. Dezenas de moscas verdes se amontoavam sob sua carne, feito um cobertor.

Não tinham nada em comum. Apenas a cor, o fato de serem pássaros, e aparecerem no meu caminho tocando a morte. Continuei seguindo, e ao alcançar a rua onde avistara o primeiro pássaro, receei encontrá-lo morto, sendo devorado por bichos. Fui escrutando cada canto, cada pneu de carro, não lembrava mais o lugar exato em que o vira. No fundo eu queria encontrá-lo. Mas nada jazia naquela alameda, nenhum sinal do pássaro preto, nem de nenhum passante. Não conseguia dar um sentido à estes dois corpos em meu caminho. Com a vista embaçada, decidi que entraria no primeiro bar. Precisava de um café bem preto com um pingo de leite morno. A rua estava vazia. Senti uma extrema solidão, e a fragilidade da vida de forma aguda. De certo, depois do trabalho, pegaria a moto rumo ao interior; estava precisando espairecer.




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