09 janvier 2016

Situação onírica

Como se um resquício, ou uma suspeita, ou um resto tivessem permanecido em algum lugar, indigestos. Eis que surgem, de repente; uma imagem, umas palavras, uma situação onírica. Desatam o nó de uns sentimentos há algum tempo empacotados no fundo da alma. São palavras, aquelas que esperei ouvir, de maneira incessante, sem mesmo saber que as esperava. Não teria sido capaz, antes deste sonho, de formular tal desejo com minhas próprias palavras. Não se tratava de uma vontade, ou de uma esperança latentes. Não se tratava de nada concreto, definido, algo no qual podemos colocar o dedo e dizer : “aqui está o começo de uma dor”. Andava a viver, como de hábito. Andava a fazer as coisas do mesmo jeito que vinha fazendo desde o dia em que te vi pela última vez. Com o tempo, você tornou-se mais embaçada, e nestes últimos anos, inexistente. Entenda; nem bem me lembro daquilo que se sucedeu imediatamente antes, ou imediatamente depoisMas do momento em que saiu caminhando, os braços pendurados ao longo do corpo, e suas mãos que tinham se soltado das minhas sem que eu percebesse o que estava por acontecer, me lembro bem. Ainda que tenha apagado sua feição da minha alma, ficou-me a imagem de suas costas. Nunca tivemos tempo de trocar estas palavras que me apareceram de maneira inesperada. Na época nem dizia a mim mesmo que o tempo estava à nossa frente. Ele simplesmente não existia para mim. Eu acordava e dormia, mas tudo isso fazia parte de um mesmo bloco : a realidade. E ele me parecia tão sólido quanto um monólito. Impossível movimentá-lo, nem de um centímetro sequer. Outras coisas me pareciam até então ter doído mais do que a ausência das palavras : a maneira como se distanciara, resignada; o corpo que se movia, sem hesitar; um monólito que se transforma em poeira pela força sútil de um soproMas destas imagens oníricas duas certezas me saltaram à alma. Aquilo que mais me faltou durante todos estes anos, desde o momento em que saiu andando, foram algumas palavras. Nada de explicações, porque ainda que noutras situações nos contentemos com a impressão de dar conta da realidade, nenhuma razão poderia conter aspecto abissal da solidão. O que eu precisava ter lido, ouvido, interpretado, subentendido, era umas poucaimpressões sobre aquilo que fui, em vocêPara que não seguisse na dúvida. Veja bem, apenas a minha subjetividade me parece hoje em dia monolítica, e ainda assim devo traduzi-la em palavras internas, silenciosas, mas extremamente presentes. Porque com o passar do tempo, e seus traços se tornando pontilhados, e invisíveis, a certeza de que tínhamos nos conhecido também se tornou invisível para mim. Como disse, só me sobrou a sombra de suas costas, um pedaço de vestido, nada que eu possa tomar por algo além daquilo que existe em mim. Mencionei uma outra certeza, nada mais inconsistente, escorregadia. Talvez trate-se de uma intuição.  Aqui está : mesmo se as coisas são feitas de pequenas partículas, as relações de sentimentos, o cotidiano de ações recorrentes, o espaço-tempo de curvas, o cabo da ponte de aço, o sedimento de milhões de anos, o amor de imensidão... nada é monolítico. Todo enlace se desfaz. Isso torna a realidade um lugar instável, mas fundamentalmente maleável. Em torno tudo é insondável, mas basta que uma coisa toque a outra para que algo se torne manifesto.  
Ainda que o desfecho tenha sido fictício, foi como se dali de dentro daquele sonho suas palavras liberassem a desconfiança, a incerteza, a mágoa, a angústia, o remorso, a saudade. Tudo imaginado, e extremamente manifesto.

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