Alí está
o homem novamente. Sentado em meio
ao caos matinal, com as mãos segurando o rosto. Apresenta uma expressão de
sofrimento. Algumas pessoas observam o homem, no curto espaço de tempo entre a
abertura da porta do metrô, a massa compacta que sai, a massa compacta que
entra. Ouve-se a buzina, e as portas fecham num estrondo. Outras pessoas
observam o homem; ninguém lhe pergunta como está.
É
japonês. Raramente vi um japonês sofrer. Sempre estóicos, sempre kamikazes,
sempre de acordo com o resto do ambiente. Se estava alí sentado, sofrendo num
lugar tão inapropriado, é que devia sentir uma dor aguda. Pela expressão não
era possível saber se se tratava de uma dor da alma, ou de uma dor do corpo.
Talvez fosse apenas uma dor nos ouvidos, daquela que desce pela garganta, ou na
direção inversa, que começa atrás da língua, e sobe até os ouvidos. Uma
inflamação. Uma bactéria. Ou talvez sentisse uma dor tão profunda (uma
separação? Uma decepção? Uma traição?), que ela lhe dobrava em dois, encurvando-lhe
as costas, fraquejando os joelhos. Tentava reencontrar um equlíbrio, um esboço
de estabilidade. Para solucionar o primeiro problema bastaria um “anti” alguma
coisa... Anti-inflamatório, antibiótico, um anti-dor. Mas se o problema tivesse
origem num sentimento, o caminho tendia a ser tortuoso. Seria preciso mais do
que uma solução para alcançar a superfície.
Isso foi
na primeira vez em que o vi. Observei-o uns instantes, mudando a duração do
trajeto cotidiano. Esperei que alguém fosse vê-lo, falar com ele, consolá-lo,
chamar o bombeiro. Ou que uma pessoa, dessas que cruzavam o seu caminho,
apressadas, de repente se postasse diante dele. Sentindo outro corpo
onipresente, o japonês sairía do próprio torpor, abaixaria as mãos, levantaria
a cabeça, e frente aos traços conhecidos, sua boca se abriria num sorriso. Foi
o que eu esperei que acontecesse, no fundo por uma razão extremamente egoísta :
que eu pudesse seguir caminho tranquilo. Mas ninguém veio lhe tirar a angústia
das mãos. Ele permaneceu alí, escondendo o rosto, franzindo a testa numa
expressão de dor, o corpo contraído, imóvel, destoando da massa informe que se
infiltrava metrô adentro. Depois de alguns instantes a participar da sua
imobilidade, e de sua dor, eu resolvi mergulhar no momento seguinte, deixando o
homem para trás, sem lhe prestar qualquer tipo de ajuda.
Nos dias
que se seguiram sua imagem me voltou à cabeça, cada vez que passei pelo mesmo
corredor, acompanhando o fluxo, apressado. Eu assim, uma molécula, uma
partícula, o menor pedaço de um grande bicho, que se movimentava sem hesitação.
Ele, desintegrando-se, deixado de lado, desaparecido. E se tivesse conversado
com ele, esparramando uma partícula na outra? O homem teria algum dia
pertencido ao fluxo de passageiros, ou era a primeira vez que se encontrava
naquele corredor de metrô? Porque sofria? Durante uma semana, tentei reconhecer
sua feição nos inúmeros rostos que cruzaram o meu caminho, em vão.
Quando o
vi pela segunda vez, pensei num déjà vu. Fechei os olhos. Tentei imaginar outro
lugar; uma floresta densa, um céu estrelado. O cheiro do metrô me trouxe de
volta ao momento presente. Ele estava realmente alí, sentado no mesmo lugar, na
mesma posição, as mãos segurando a expressão de dor. Exatamente a mesma dor.
Como podia uma dor se repetir duas vezes, com a mesma intensidade? Tratava-se
certamente de uma dor física. Ou, ápice da desgraça, teria perdido duas pessoas
queridas num curto espaço de tempo. Ou o homem terminara uma relação, se
arrependera, e terminara a mesma relação de maneira definitiva, tudo em uma
semana. Ou simplesmente fingia... Esperava ansiosamente que alguém, uma única
alma, se desgrudasse do hábito da pressa, do cotidiano, e viesse lhe perguntar
: “está bem?”.
Talvez
tenha sido a dúvida, ou o espanto em rever a mesma cena, tão peculiar, que me
acompanhara e me entristecera. Não me decidi a falar com ele. Durante uma
semana eu repetira a mim mesmo uma questão que permanecia sem resposta : porque
não o tinha abordado? Porque deixei aquele homem sentado, sofrendo sozinho?”. E
agora, face à mesma cena, numa expressão de estupor, eu me preparava para
continuar o caminho com passos apressados. Foi o que fiz. Ao passar pelo homem,
que não pareceu se dar conta do meu olhar insistente, ou da minha presença a
poucos centímetros de onde sentara, pude sentir a estoicidade que lhe era
própria. Um japonês envolto num envelope. Ela lhe guardava a alma, o corpo, sem
deixar que se desvencilhassem de uma certa maneira de lidar com a realidade. Me
pareceu então que aquele homem realmente sofria. Talvez encenasse, imaginasse
uma história, um drama. Repetia a si mesmo uma mentira. Talvez viesse todas as
semanas sentar naquele mesmo lugar, punha as mãos no rosto e mergulhava na mais
profunda desordem, própria à sua ficção.
Já ia se
formando em mim a resolução da ação, quando me veio à idéia uma explicação, tão
clara quanto uma certeza. Tratava-se de uma pessoa nada mais ordinária. Um
homem, que acompanhava a amálgama e que passava por aquele lugar todos os dias.
Entrava e saía do vagão do metrô, apressado, como os outros. E foi num dia como
os outros, um dia sem indícios nem dobras, que o fato de uma tristeza infinita
sobreveio bem alí, naquele exato lugar, bem em frente ao homem de estoicidade
nipônica. Aquele mesmo homem que, sem suspeitar do que estava por acontecer, e
de como o que se daria uns minutos mais tarde mudaria sua vida para sempre,
tirou os olhos do telefone que segurava nas mãos, impaciente, esperando que a
porta do metrô se abrisse. Foi uma questão de segundos, ao que parece, a
duração máxima dos acontecimentos fundamentais. Sem uma razão certa, o homem
olhou para o lado e percebeu uma moça, nova, vestida de azul turquesa. Pairou
alguns segundos sob o encanto da jovem mulher. Era como se ela atirasse o seu
olhar. Durante muito tempo tentou se lembrar no que pensou naquele momento;
conseguiu apenas resgatar o vestígio do encantamento que sentiu. No instante
seguinte, percebeu sem se ater ao fato, que o metrô se aproximava. Como se
mergulhasse numa piscina, e sem mudar a expressão de serenidade que o seu rosto
imprimia na realidade, a moça se jogou na frente do metrô.
Passaram-se
meses. Eu descia na mesma estação, e todo começo de semana, às 9h20 da manhã, o
homem se encontrava alí, escondendo o rosto com as mãos. Na primeira vez em que
o vi, achei que escondia a dor intensa que sentia. Mas à medida em que se
tornou mais familiar, o seu ato tomou outro sentido para mim: o japonês
segurava o próprio rosto com as mãos porque conversava com a jovem. Um dia
resolvi chegar mais cedo, e observar o seu ritual. Ele vinha com uma maleta,
vestia um terno, afirmava a expressão de quem se encaminha para o trabalho. De
repente, parava de frente ao banco, se tornava outra pessoa. Seus olhos se
fechavam, sua testa enrugava, no momento em que se sentava já não era mais o
mesmo. Aquilo durava dez minutos. Depois se levantava, maleta na mão, e seguia
caminho. Certamente ele desconhecia as razões da moça; qual impasse tinha resultado
no ato extremo? Ao observá-lo, me veio à cabeça uma curiosidade : o que dizia à
jovem? À que se assemelhava essa curiosa comunicação? Ou talvez fosse ela que
lhe sussurrava algumas palavras de consolo...
Num dia
em que o hábito já tinha tomado o lugar da surpresa e da descoberta, fazendo da
presença do japonês um dos elementos imperceptíveis do entorno, avistei uma
moça sentada no banco. Despreocupada, procurava algo dentro da bolsa. Nada
dele. Nem nos outros bancos, nem no corredor, de pé, esperando pelo lugar que parecia
lhe pertencer. Nenhum sinal de sua estoicidade, nem do drama ocorrido naquele
curto espaço de tempo. Como se a moça vestida de azul turquesa nunca tivesse
existido, e outras moças tomassem o seu lugar. As pessoas seguiam, apressadas.
A realidade continuava a insistir, apresentando-se àqueles que nela se colavam
de maneira incontestável. A ausência do homem provocou em mim a vertigem do
efêmero. Sua história, um dia, me alçara feito laço. Agora já não pertencia
mais à totalidade, que se movimentava entre os corredores, de um metrô ao
outro, de forma sólida e convicta. Me aparentava mais a uma poeira, desapegada,
flutuando pelo vento canalizado.
Na semana
seguinte, exatamente às 9h20 da manhã, desembarquei na estação como de costume
com o intuito de fazer uma baldeação. A visão do banco vazio resultou numa
vontade irresistível de sentar-me. Hesitei : um impasse. Fechei os olhos, cobri
meu rosto com as mãos, e como se me tocasse, um pedaço de tecido se insinuou à
mim. Era seda, azul. Não sabia o que viria em seguida, mas experimentava a fascinação,
o encantamento.
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