23 mars 2016

Impasse

Alí está o homem novamente. Sentado em meio ao caos matinal, com as mãos segurando o rosto. Apresenta uma expressão de sofrimento. Algumas pessoas observam o homem, no curto espaço de tempo entre a abertura da porta do metrô, a massa compacta que sai, a massa compacta que entra. Ouve-se a buzina, e as portas fecham num estrondo. Outras pessoas observam o homem; ninguém lhe pergunta como está.
É japonês. Raramente vi um japonês sofrer. Sempre estóicos, sempre kamikazes, sempre de acordo com o resto do ambiente. Se estava alí sentado, sofrendo num lugar tão inapropriado, é que devia sentir uma dor aguda. Pela expressão não era possível saber se se tratava de uma dor da alma, ou de uma dor do corpo. Talvez fosse apenas uma dor nos ouvidos, daquela que desce pela garganta, ou na direção inversa, que começa atrás da língua, e sobe até os ouvidos. Uma inflamação. Uma bactéria. Ou talvez sentisse uma dor tão profunda (uma separação? Uma decepção? Uma traição?), que ela lhe dobrava em dois, encurvando-lhe as costas, fraquejando os joelhos. Tentava reencontrar um equlíbrio, um esboço de estabilidade. Para solucionar o primeiro problema bastaria um “anti” alguma coisa... Anti-inflamatório, antibiótico, um anti-dor. Mas se o problema tivesse origem num sentimento, o caminho tendia a ser tortuoso. Seria preciso mais do que uma solução para alcançar a superfície.
Isso foi na primeira vez em que o vi. Observei-o uns instantes, mudando a duração do trajeto cotidiano. Esperei que alguém fosse vê-lo, falar com ele, consolá-lo, chamar o bombeiro. Ou que uma pessoa, dessas que cruzavam o seu caminho, apressadas, de repente se postasse diante dele. Sentindo outro corpo onipresente, o japonês sairía do próprio torpor, abaixaria as mãos, levantaria a cabeça, e frente aos traços conhecidos, sua boca se abriria num sorriso. Foi o que eu esperei que acontecesse, no fundo por uma razão extremamente egoísta : que eu pudesse seguir caminho tranquilo. Mas ninguém veio lhe tirar a angústia das mãos. Ele permaneceu alí, escondendo o rosto, franzindo a testa numa expressão de dor, o corpo contraído, imóvel, destoando da massa informe que se infiltrava metrô adentro. Depois de alguns instantes a participar da sua imobilidade, e de sua dor, eu resolvi mergulhar no momento seguinte, deixando o homem para trás, sem lhe prestar qualquer tipo de ajuda.
Nos dias que se seguiram sua imagem me voltou à cabeça, cada vez que passei pelo mesmo corredor, acompanhando o fluxo, apressado. Eu assim, uma molécula, uma partícula, o menor pedaço de um grande bicho, que se movimentava sem hesitação. Ele, desintegrando-se, deixado de lado, desaparecido. E se tivesse conversado com ele, esparramando uma partícula na outra? O homem teria algum dia pertencido ao fluxo de passageiros, ou era a primeira vez que se encontrava naquele corredor de metrô? Porque sofria? Durante uma semana, tentei reconhecer sua feição nos inúmeros rostos que cruzaram o meu caminho, em vão.
Quando o vi pela segunda vez, pensei num déjà vu. Fechei os olhos. Tentei imaginar outro lugar; uma floresta densa, um céu estrelado. O cheiro do metrô me trouxe de volta ao momento presente. Ele estava realmente alí, sentado no mesmo lugar, na mesma posição, as mãos segurando a expressão de dor. Exatamente a mesma dor. Como podia uma dor se repetir duas vezes, com a mesma intensidade? Tratava-se certamente de uma dor física. Ou, ápice da desgraça, teria perdido duas pessoas queridas num curto espaço de tempo. Ou o homem terminara uma relação, se arrependera, e terminara a mesma relação de maneira definitiva, tudo em uma semana. Ou simplesmente fingia... Esperava ansiosamente que alguém, uma única alma, se desgrudasse do hábito da pressa, do cotidiano, e viesse lhe perguntar : “está bem?”.
Talvez tenha sido a dúvida, ou o espanto em rever a mesma cena, tão peculiar, que me acompanhara e me entristecera. Não me decidi a falar com ele. Durante uma semana eu repetira a mim mesmo uma questão que permanecia sem resposta : porque não o tinha abordado? Porque deixei aquele homem sentado, sofrendo sozinho?”. E agora, face à mesma cena, numa expressão de estupor, eu me preparava para continuar o caminho com passos apressados. Foi o que fiz. Ao passar pelo homem, que não pareceu se dar conta do meu olhar insistente, ou da minha presença a poucos centímetros de onde sentara, pude sentir a estoicidade que lhe era própria. Um japonês envolto num envelope. Ela lhe guardava a alma, o corpo, sem deixar que se desvencilhassem de uma certa maneira de lidar com a realidade. Me pareceu então que aquele homem realmente sofria. Talvez encenasse, imaginasse uma história, um drama. Repetia a si mesmo uma mentira. Talvez viesse todas as semanas sentar naquele mesmo lugar, punha as mãos no rosto e mergulhava na mais profunda desordem, própria à sua ficção.
Já ia se formando em mim a resolução da ação, quando me veio à idéia uma explicação, tão clara quanto uma certeza. Tratava-se de uma pessoa nada mais ordinária. Um homem, que acompanhava a amálgama e que passava por aquele lugar todos os dias. Entrava e saía do vagão do metrô, apressado, como os outros. E foi num dia como os outros, um dia sem indícios nem dobras, que o fato de uma tristeza infinita sobreveio bem alí, naquele exato lugar, bem em frente ao homem de estoicidade nipônica. Aquele mesmo homem que, sem suspeitar do que estava por acontecer, e de como o que se daria uns minutos mais tarde mudaria sua vida para sempre, tirou os olhos do telefone que segurava nas mãos, impaciente, esperando que a porta do metrô se abrisse. Foi uma questão de segundos, ao que parece, a duração máxima dos acontecimentos fundamentais. Sem uma razão certa, o homem olhou para o lado e percebeu uma moça, nova, vestida de azul turquesa. Pairou alguns segundos sob o encanto da jovem mulher. Era como se ela atirasse o seu olhar. Durante muito tempo tentou se lembrar no que pensou naquele momento; conseguiu apenas resgatar o vestígio do encantamento que sentiu. No instante seguinte, percebeu sem se ater ao fato, que o metrô se aproximava. Como se mergulhasse numa piscina, e sem mudar a expressão de serenidade que o seu rosto imprimia na realidade, a moça se jogou na frente do metrô.
Passaram-se meses. Eu descia na mesma estação, e todo começo de semana, às 9h20 da manhã, o homem se encontrava alí, escondendo o rosto com as mãos. Na primeira vez em que o vi, achei que escondia a dor intensa que sentia. Mas à medida em que se tornou mais familiar, o seu ato tomou outro sentido para mim: o japonês segurava o próprio rosto com as mãos porque conversava com a jovem. Um dia resolvi chegar mais cedo, e observar o seu ritual. Ele vinha com uma maleta, vestia um terno, afirmava a expressão de quem se encaminha para o trabalho. De repente, parava de frente ao banco, se tornava outra pessoa. Seus olhos se fechavam, sua testa enrugava, no momento em que se sentava já não era mais o mesmo. Aquilo durava dez minutos. Depois se levantava, maleta na mão, e seguia caminho. Certamente ele desconhecia as razões da moça; qual impasse tinha resultado no ato extremo? Ao observá-lo, me veio à cabeça uma curiosidade : o que dizia à jovem? À que se assemelhava essa curiosa comunicação? Ou talvez fosse ela que lhe sussurrava algumas palavras de consolo...    
Num dia em que o hábito já tinha tomado o lugar da surpresa e da descoberta, fazendo da presença do japonês um dos elementos imperceptíveis do entorno, avistei uma moça sentada no banco. Despreocupada, procurava algo dentro da bolsa. Nada dele. Nem nos outros bancos, nem no corredor, de pé, esperando pelo lugar que parecia lhe pertencer. Nenhum sinal de sua estoicidade, nem do drama ocorrido naquele curto espaço de tempo. Como se a moça vestida de azul turquesa nunca tivesse existido, e outras moças tomassem o seu lugar. As pessoas seguiam, apressadas. A realidade continuava a insistir, apresentando-se àqueles que nela se colavam de maneira incontestável. A ausência do homem provocou em mim a vertigem do efêmero. Sua história, um dia, me alçara feito laço. Agora já não pertencia mais à totalidade, que se movimentava entre os corredores, de um metrô ao outro, de forma sólida e convicta. Me aparentava mais a uma poeira, desapegada, flutuando pelo vento canalizado.
Na semana seguinte, exatamente às 9h20 da manhã, desembarquei na estação como de costume com o intuito de fazer uma baldeação. A visão do banco vazio resultou numa vontade irresistível de sentar-me. Hesitei : um impasse. Fechei os olhos, cobri meu rosto com as mãos, e como se me tocasse, um pedaço de tecido se insinuou à mim. Era seda, azul. Não sabia o que viria em seguida, mas experimentava a fascinação, o encantamento.  


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