Quando comecei a ver aqui e ali um pedinte segurando um filhote de
cachorro ou de gato, a angústia tomou conta de mim. Então as pessoas se sentiam
mais tocadas por um pequeno animal do que por aquele que, sentado ao lado do
bicho, buscava um jeito de se alimentar, esquecer, se locomover ou comprar
cigarros? Pensavam : “Pobre homem... o cachorro lhe faz compania. Mas se nem
tem o suficiente para o próprio sustento, o que dará de comer ao filhote?!?”.
Na tristeza da pobreza, além de aguentar estorvos decorrentes da situação, há
de se fazer uso de sensibilidade para ganhar uns trocados. Cada indivíduo tenta
encontrar um jeito de tocar outros indivíduos. E visto que mais o tempo passa,
mais a riqueza torna-se exclusiva, não há condição particular para se encontrar
em meio à dificuldades financeiras. A pobreza não é própria à ninguém, mas aí
está algo que tende a se democratizar. Fazer apelo à alma de poeta, à astúcia,
aos dotes vocais, aos conflitos internacionais, à veia cômica, à pena... todos
os caminhos para arrecadar umas moedas buscam tocar a alteridade.
Foi assim, afundado em tais pensamentos, que decidi examinar maneiras de
preencher o espaço vazio da esmoleira. Nas ruas, no transporte, nos bancos da
praça, observar aqueles que pedem dinheiro é uma maneira de entender o ser
humano. Interrogar a alma que dá “uma esmola”, “uma ajudinha”, “um trocado”... o
que faz com que ponha a mão no bolso, recupere umas moedas, e às vezes mão na
mão, às vezes jogadas despudoradamente num prato velho, se desfaça delas, transferindo-as
ao outro? O outro; procede à uma intervenção sentimental sem nem se dar conta. Certamente
outras preocupações pululam na cabeça.
Pequeno, depois de percorrer a feira com a minha mãe, sentava com ela nas
cadeiras improváveis de uma barraca de pastel, e invariavelmente uma criança vinha
nos abordar. Minha mãe explicava : “Olha, dinheiro eu não dou, mas se você
estiver com fome, eu compro um pastel.”. Aquela situação me deixava
extremamente sem graça. A vergonha de comer com um desconhecido se misturava
com a vergonha de também ser criança, muitas vezes da mesma idade do pequeno
pedinte. Na maioria das vezes a criança comia o pastel com vontade. Mas eu só
conseguia pensar : “na vida precisamos de outras coisas além de pastel... como ele
vai fazer se todo mundo pra quem pedir dinheiro lhe comprar um pastel?”. Minha
mãe me explicou que muitas vezes as crianças vinham a mando de um adulto, que
acabaria gastando tudo em bebida e cigarros. Melhor mesmo era garantir que o
pequeno pedinte guardasse alguma coisa no estômago. Eu comia o pastel apressado,
querendo logo voltar para o conforto do meu lar, e esquecer a situação, e o
adulto que cuidava de tal criança, que na minha cabeça se aparentava ao homem
do circo da história do Pinóquio, que transforma crianças em burros. Mas no
fundo, que acabasse comprando cigarros ou pagando a conta de luz, o adulto por
trás da criança tinha entendido um princípio deontológico transformado em
lugar-comum : a pobreza na infância é tragédia, a pobreza de um adulto é
destino.
Ultimamente a alteridade andou por outros caminhos. O lugar de uma
criança é em casa ou na escola. E se antes cruzá-la na rua merecia atenção,
cada vez mais a imagem torna-se intolerável. Hoje em dia um adulto que pede
esmola precisa de ajuda, mas um adulto acompanhado de um pequeno pedinte não
merece consideração. A irresponsabilidade do adulto toma o lugar da necessidade
na sensibilidade do doador. Afinal, porque se impõe, de maneira violenta,
expondo desgraça? Outro lugar-comum. Daí a proliferação de pequenos animais. No
começo eram filhotes de cachorros e gatos. Em seguida vieram os coelhos. Qual
será o próximo animal capaz de amaduar o coração do passante sem contrariá-lo?
Situações conflituosas de terras distantes também tornam-se visíveis nos
corredores do metrô, ou nos sinais de trânsito. Famílias inteiras (a mãe, o
pai, a avó, o tio, um adolescente, duas ou três crianças, um bebê de colo)
amontoam-se num pequeno espaço com cartazes onde se vê marcado “família síria”.
O passante se pergunta “serão mesmo sírios?”, e dependendo de como acordou
naquela manhã, com quem cruzou no elevador, o tempo, os afazeres do dia, o fato
de estar apaixonado ou de luto, por onde viajou, as origens dos bisavós, e de
uma série de outras conjunturas, decidirá em favor do gesto esperado, (a mão
que adentra a bolsa, ou o bolso do casaco buscando uma ajuda), ou apertará o
passo. Nota-se que quando o passante, abordado pelo pedinte, decide somente
passar, a cadência dos passos aumenta. Parece que deseja correr pra longe da
pobreza. Mas quem vai condená-lo? O pedinte, se um dia trocasse de papel com o
passante, certamente teria ganas de sair correndo o mais longe possível da
pobreza.
Hoje de manhã um homem entrou no vagão, e cantou uma música de Georges
Brassens. A alma nua; sem instrumentos, sem acompanhamento, sem microfone nem
nenhum outro artifício. Uma coragem admirável. Sem discurso, entrou no metrô,
pediu desculpas e disse que cantaria uma música. De certo, era afinado. Tinha a
voz doce. A relação entre a aparência e a doçura era disparate : tinha roupas
(poucas para a época do ano) sujas. Vía-se que dormia num lugar e noutro, e que
nunca tinha feito da música um ganha-pão. Pensei nos trocados dos quais me
desfizera a pouco comprando um jornal, e me arrependi. Meus bolsos estavam
vazios. Demorei a perceber a moça, porque segurava um livro, e porque me
perdia, como ela, na melodia. Fingia que lia, mas o sorriso tímido que esboçava
dizia algo mais. Aquele homem lhe tocava a alma; seus olhos fixavam as páginas,
sem dechifrá-las. Olhos úmidos. A canção lhe lembrava um momento perdido no
tempo e na correria da vida, e o fato de ouví-la naquela manhã, de forma
inesperada, fazia do instante um poema. Quando saísse do vagão, questionaria
suas escolhas, se recordaria de uma pessoa que amara, de um principio deixado
de lado, da simplicidade, de uma maneira diferente e esquecida de viver a
própria vida.
Assim
como a moça, eu também deixei o vagão pensando numa maneira diferente de viver
a vida. Não se trata de ironia ou de parlatório. Impressões sem sentido. Sentimentos
jogados ao vento. Observar as intervenções dos pedintes não denota voyerismo. Trata-se
de uma homenagem. Cada vez mais difícil é saber como alcançar o outro. Pois é o
que tentam fazer todos os dias os milhares de pedintes, quando procuram botar
algo o estômago e na esmoleira.
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