Trata-se de um lugar especial.
Parece que está sempre aqui, do meu lado, sob meus ombros, logo acima da
cabeça, pairando no espaço invisível, imaterial. Mas o seu acesso é
extremamente restrito. Não posso decidir sozinha “hoje vou dar uma passada”.
Não é desses lugares em que damos uma passada.
Para que uma passagem se abra (e que
eu, de repente, me encontre alí sem entrever as premissas de uma mudança),
certas condições devem estar reunidas. Então, é como se uma fissura rachasse a
realidade de uma ponta à outra. Mas eu não saberia nomear as exatas condições.
Tenho apenas a impressão delas. O espírito, numa dada conjuntura de
sentimentos. A noite que cai, escura, ocupando todo o entorno feito um borrão. A
claridade seca de um dia de outono.
Nessas horas é como se tudo se
resumisse a um só ponto. Eu continuo dona
dos meus próprios movimentos, e todos os outros elementos estão
presentes, mas tudo se comporta como uma existência que muda de entonação. As
sensações mais presentes, mais marcadas, parecem me carregar para além daquilo
que conheço. A vivência de todos os dias torna-se apenas uma história.
Novamente me vem a sensação : algo paira sob a minha cabeça. A fissura se abre,
eu me meto dentro dela, e no momento seguinte sou eu quem paira sob a
realidade.
Tento escutar um indício vindo de
algum canto. Como se não tivesse o hábito do desconhecido, e esperasse por uma explicação.
Mas não há nada além do silêncio. As palavras continuam ondulando, invisíveis,
mas fazem parte de uma matéria compacta. Como se eu, as palavras e todo o resto
fôssemos um bloco. Depois de um certo tempo, quando o espírito se acostuma com
a nova vibração, a individualidade deixa estar, e expande-se em mil pedaços. O
barulho é surdo, estufado.
Quanto mais procuro descrever este
lugar, mais me afasto dele. Como se desfiasse, à medida que costuro as
palavras. Não é objeto, para que se observe tentando a todo custo lhe colar um
pensamento. Não lhe cabe descrição. Não se pode abarcá-lo. Não se pode
segurá-lo com as mãos.
De repente me lembro das páginas
deste livro infantil. Me parecia estranho, porque na maioria delas faltavam
cores. Tinha essa menina, que passava de um lugar à outro, segurando no rabo
dos pássaros, mas a paisagem era sempre a mesma : uma espécie de aridez,
própria à página em branco. Imaginava um lugar distante, porque certamente a
branquidão da paisagem remetia à neve. Um pólo, um país onde chaminés cuspiam
fumaça incessantemente. Campos nevados. Mas de uma maneira estranha a menina
não parecia sentir frio. Usava um vestido curto de criança, esvoaçante à
maneira dos pássaros. Foi assim que uma impressão colou-se na memória dessas
páginas : a impressão de que o lugar em que se encontrava esta menina era um
lugar inexistente, ou no mínimo diferente da realidade. Uma fenda no tempo.
Hoje o dia esqueceu de amanhecer. O
céu está baixo, as luzes dos lampadários estranhamente acessas. É possível
respirar a iminência de um acontecimento. Mas tudo demora em se fazer presente.
E como se o dia exercesse uma pressão sob meu corpo, e que a matéria não
soubesse mais para onde ir, o meu corpo atravessa lentamente a fissura, e me
encontro mais uma vez neste outro lugar.
Certamente, a vibração inusitada das
partículas da matéria resultam, de uma maneira ou de outra, na flutuação. Como
se espalhando-se, os menores pedaços de cada coisa (pessoa, palavra, nota
musical), vacilassem e ocupassem toda a bolha em que se encontram. Pois é essa
a sensação que me provoca, esse lugar aquém do nível do mar, além do cimo da
árvore : um meio aquoso, fluído, esvoaçante, animado. Logo mais, quando me
puser a tentar cerceá-lo com a razão, me escapará mais uma vez, deixando-me
para trás, ou no mesmo lugar em que me encontrava no instante anterior.
Invariavelmente sinto a tonalidade da realidade mudar, quando por um motivo que
me é desconhecido e misterioso, atravesso a fresta que se abre. Mas nunca
percebo o momento em que me descolo deste lugar especial. A mim, só resta
deixar-me estar. Fecho os olhos, me esqueço, agarro nas últimas sensações, num
esforço de manter toda partícula nesse mesmo timbre peculiar. Aí está a
realidade a me chamar a mim mesma.
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