29 mars 2017

O peso das coisas II : sentimento pendular

Já tinha visto aquele objeto curioso em algum lugar, ainda que não fosse o costume. Por um motivo que lhe era desconhecido, a diversão das crianças na sua cidade não incluía aquelas cadeiras singulares. Como nunca tinha experimentado sentar-se numas delas antes, nunca dera pela falta do brinquedo. Assim como as outras crianças, gostava de brincar de grudar as pequenas pernas nuas no escorregador quente de sol, de subir e descer escadas, escalar a árvore imaginária, conduzir o barco por águas perigosas... Mas das cadeiras voadoras, nem carência, nem arrependimento. 
Foi visitando a cidade da avó que um dia a curiosidade veio beslicar-lhe o tornozelo. Não disse nada, misteriosa que era, para não levantar suspeitas. Postou-se do outro lado do canteiro de areia, com dois baldes, como se pretendesse fabricar bolos para uma festa. Daquele ângulo podia contemplar o brinquedo desconhecido. As crianças iam e vinham com uma facilidade desconcertante. Algumas subiam com cuidado, outras pulavam na cadeira sem pés, e num mesmo movimento logo se punham a levantar vôo. Uma coisa era certa : cada criança que subia naquele negócio parecia experimentar outra realidade. Um prazer incomensurável se estampava em cada rosto. Uma sensação de super-herói; o transformar-se num animal alado; a impressão de ser outro. O uso do objeto parecia extremamente simples. A menina sentiu um formigamento nos pés; teria que viver aquela experiência, de um jeito ou de outro. Afinal, não se tratava de um brinquedo?
Através de observação minuciosa, concluiu que deveria imperativamente segurar com as duas mãos as correntes laterais. Nunca soltá-las; jamais. Sentia-se capaz de fazê-lo, ainda que não soubesse como se posicionaria para começar a voar. Enquanto pensava no gesto corriqueiro (o ato de sentar-se numa cadeira), ouviu a voz da avó chamando o seu nome. Iam embora. Tirou os olhos das cadeiras voadoras, e foi como se retornasse à Terra. Viu-se envolta por baldes, colada na areia, e sentiu inveja daquelas crianças. Quando iam ao parque, levantavam do chão. Ela mesma passava grande parte do tempo nos parques, e a única coisa que podia fazer para tirar os pés do chão era subir num trepa-trepa, ou pular corda. Nada comparado com aquilo. Nada de sentir o vento nos cabelos, o frio na barriga, as pernas livres... Nada de decolagem. Pensou que o escorregador, certamente o seu brinquedo preferido, causava-lhe um pouco dessas coisas. Mas a sensação não durava o suficiente para sentir-se estrangeira, como se chegasse ou partisse de um lugar distante. Nos três segundos de uma descida não chegava nem a perceber que estava realmente escorregando.
À noite, já quase fechando os olhos, uma imagem não lhe saía da cabeça : o movimento de panos. As saia das meninas esvoaçando, como se dançassem uma música que ela, na sua curta vida de criança, nunca tinha escutado. Lágrimas sentidas lhe subiram aos olhos. Prometeu a si mesma que no dia seguinte sentaria numa daquelas cadeiras.
A avó resolveu comprar legumes na venda. Na barriga da menina, caracóis e borboletas movimentavam-se incessantemente desde a noite anterior, causando alvoroço. Já tinha o plano todo na cabeça : uma vez que passasse o portão do parque, correria sem olhar para trás, em direção às cadeiras. Esperava que uma delas estivesse vaga. Isso porque tinha medo dos próprios sentimentos:  e se na hora lhe faltasse coragem? E se vacilasse diante da habilidade das outras crianças? E se simplesmente não conseguisse fazê-la voar? A pouca experiência e a falta de autonomia ainda não lhe tinham permitido saber o que valia. Tratava-se de uma curta existência. Mas até alí, mais de uma vez, acreditava ter feito prova de coragem. Diziam dela que era “destemida”, e ainda que não soubesse exatamente o que a palavra queria dizer, à menina lhe parecia que contava algo sobre como lidava com as dificuldades. Quando caía, se esforçava para não chorar. Quando dormia, fechava a porta. Quando uma vez perdeu a presilha que tinha acabado de ganhar, não disse nada a ninguém. Também não contou a ninguém que o seu bicho preferido não era o gato, mas a taturana. Desconhecia qual seria a sua própria reação diante do desafio. Mas a vontade de subir numa daquelas coisas era tão grande, que se não tentasse pelo menos uma vez, sentia que nunca mais teria sossêgo na vida. O seu coração, ainda pequeno, batia mais forte do que tambor.
- Que maravilha estão estes pêssegos!
- A senhora vê, ainda não estamos no verão, e já vão dando feito banana... Este ano promete!
Tentou se concentrar nas frutas e nos legumes do carrinho. Não queria sentir raiva da avó. Mas sentia. Muita. Porque tinha que comprar mais frutas e legumes se a sua cozinha estava repleta de comida? Porque sempre tinha que conversar com todos os vizinhos, vendedoras, com os cachorros e gatos, e papagaios, e os porteiros, taxistas, vidraceiros, e com todo mundo que caísse na besteira de lhe dizer um simples “bom dia”? Porque justo hoje tudo demorava em acontecer? A menina sentiu que se não saísse rapidamente da mercearia, se transformaria numa nuvem carregada, e sairia chovendo por aí.  
No momento preciso em que os seus braços viravam ao translúcido, ouviu a avó se despedir “esse mundo, cada vez mais...”. Num átimo voltou a se sentir inteira, e decidida. A espera tinha aumentado as ganas da menina. Como em seu plano, e sem nem perceber o caminho entre a venda e o parque, empurrou o portão de ferro com os pés, e disparou. Não olhou para trás. Não disse nada à avó. Corria, e tinha a impressão que já nem tocava mais o chão. A única coisa que fixava era a cadeira mágica. Uma cadeira vazia que lhe dizia “te esperei toda a vida!”. Se aproximou o máximo que pode sem tocá-la, e postou-se diante dela com respeito. Como para dizer às outras crianças “ela me esperou a vida toda”. Custou à menina dar-lhe as costas. Contemplou o parque sem realmente enxergar as pessoas, os brinquedos e os bancos à sua volta. Como se deixasse para trás algo importante, uma cidade, um país, um planeta. Embarcava para uma viagem, cuja as razões lhe eram desconhecidas, mas que sabia necessária. O momento em que agarrou as correntes com as mãos foi o mais delicado. Lembrava da regra, a mais importante : nunca soltar as correntes. Mas então uma dificuldade inusitada surgiu à menina : como tinha as mãos ocupadas, não podia fazer uso delas para subir no banco. E como o banco estava suspenso pelas correntes, ele ia de um lado para o outro, acompanhando o esforço que ela fazia para se sentar. Três tentativas frustradas. A dúvida tormou conta da menina: as bochechas quentes de vergonha, as mãos vacilantes et suadas. Estava a ponto de largar as correntes, quando surgiu ao seu lado uma outra menina.
Até aquele momento, concentrada na sua aventura, nem sequer tinha olhado para as outras cadeiras. A menina ao seu lado devia ter a sua idade. Um vestido vermelho, combinando com duas fivelas e duas chiquinhas, que seguravam duas longas tranças. Encostou no brinquedo como quem tem o hábito. No entanto, conteve-se. Ao invés de entregar-se ao prazer da decolagem, postou-se de costas para a cadeira, segurando as correntes. Alinhadas, as duas pareciam se preparar para o maior salto de suas vidas. Brincadeira era coisa séria.
Uma olhou para a outra, e sussurrou “tudo bem, tudo vai ficar bem”. A menina fixou os olhos na vizinha, porque foi como se lhe chamassem... “vem, faça como eu!”. As duas, concentradas, aguardavam o próximo passo. Momento suspenso no tempo feito pena de passarinho. De súbito, a vizinha pulou na cadeira, segurando as correntes. A menina, sem pensar, fez o mesmo. E de repente, seus pés já não estavam mais no chão, e o impulso inicial deu lugar à oscilação, a um vaivém, mais rápido, mais rápido, mais rápido, e o seu vestido voando no ar, e o seu corpo dançando com a cadeira, e os seus pequenos braços, extensão das correntes, o sorriso, a risada, o prazer de voar! A menina olha o parque. Do alto, árvores aparecerem e desaparecerem, o céu e o chão, o frio na barriga, parece até que vê a realidade de ponta cabeça. Já não sabe mais distinguir a parte de cima da parte de baixo. As coisas do mundo não tem mais lugar fixo, não tem mais peso. Flutuam no espaço da existência. Ela olha para o lado, e numa expressão de felicidade incontida, agradesse a outra menina. Desejou que aquele momento não acabasse nunca mais. Não sabia como parar, e não se preocupava com isso. Estava suspendida, pendurada, sustentava-se no ar...


- Menina! Já é mais de meio-dia! Desce do balanço, que a vida é mais do que um vai e vem!     

Aucun commentaire: