29 mars 2018

O par de óculos

Esse objeto controverso foi o estopim do meu envelhecimento. Foi assim que soube que tinha passado para a penúltima etapa da vida. O fato de ter que usar óculos pela primeira vez, depois de quarenta e quatro anos. Isso, e minhas bochechas que murchavam feito bexiga vazia, depois da festa. Meu rosto tentava coincidir com os ossos que lhe davam forma. “Meu corpo, aos poucos, se aproxima da sua essência”, pensei. Tomava outra direção. Procurava o começo, quando ainda nem tinha pele nem pêlos. Meus olhos estavam usados. Já não enfrentavam mais a realidade como antes. Como se minha visão, junto à minha alma, tivessem se fragilizado, cegados pela lucidez.
Um par de óculos para olhos cansados... Talvez me permitissem enxergar as coisas por outro lado? “E se esse for o caso”, pensei, “que sejam menos exatos. Que tornem as coisas mais fluídas, sem tanta nitidez. Que no lugar da fissura, eu veja o vão, e ao invés do desgaste, uma evolução. Talvez os rostos antigos e apagados reapareçam. Se também usarem óculos, pode até ser que me revejam sem rugas, com a descontração e a coragem de vinte anos atrás. Gostaria de enxergar a paisagem como uma pintura impressionista, antes que se torne abstrata, ou monocroma. E as pessoas, pelo melhor ângulo”.
Como os olhos, minhas pálpebras também se cansavam. Iam fechando, questão de milímetros. Isso passou a me dar uma expressão de acuidade, onde havia somente ofuscamento diante de tanto realismo. Deve ter-me gasto a vista, o realismo. “Entre os 40 e os 60 é normal” me disse, inocentemente, o oftalmologista. Então, além dos compromissos, das perdas, da inevitável melancolia, também os olhos se perdiam entre os 40 e os 60.
Não me importava lançar mão de subterfúgio. O objeto me agradava. Mais nova, sonhara em tê-los. Mas a verdade é que já não apareceria como antes. À sensualidade misturada com inteligência, substituiría-se a imagem da mulher de meia idade e meia vista.
Havia uma vantagem em envelhecer e tender, lentamente, àquilo que fui um dia. Era como se o tempo me desformatasse. Aos poucos, ia perdendo os automatismos da pessoa responsável que me obriguei a ser. Meus olhos, cansados daquilo que viam, tinham decidido observar a existência de outra maneira. Levavam meu corpo com eles. Davam cabo, sutilmente, da ordem. Talvez estivessem tomando o caminho da liberdade.

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