Esse objeto
controverso foi o estopim do meu envelhecimento. Foi assim que soube que tinha
passado para a penúltima etapa da vida. O fato de ter que usar óculos pela
primeira vez, depois de quarenta e quatro anos. Isso, e minhas bochechas que
murchavam feito bexiga vazia, depois da festa. Meu rosto tentava coincidir com
os ossos que lhe davam forma. “Meu corpo, aos poucos, se aproxima da sua
essência”, pensei. Tomava outra direção. Procurava o começo, quando ainda nem
tinha pele nem pêlos. Meus olhos estavam usados. Já não enfrentavam mais a
realidade como antes. Como se minha visão, junto à minha alma, tivessem se
fragilizado, cegados pela lucidez.
Um par de óculos para
olhos cansados... Talvez me permitissem enxergar as coisas por outro lado? “E
se esse for o caso”, pensei, “que sejam menos exatos. Que tornem as coisas mais
fluídas, sem tanta nitidez. Que no lugar da fissura, eu veja o vão, e ao invés
do desgaste, uma evolução. Talvez os rostos antigos e apagados reapareçam. Se
também usarem óculos, pode até ser que me revejam sem rugas, com a descontração
e a coragem de vinte anos atrás. Gostaria de enxergar a paisagem como uma
pintura impressionista, antes que se torne abstrata, ou monocroma. E as
pessoas, pelo melhor ângulo”.
Como os olhos, minhas
pálpebras também se cansavam. Iam fechando, questão de milímetros. Isso passou
a me dar uma expressão de acuidade, onde havia somente ofuscamento diante de
tanto realismo. Deve ter-me gasto a vista, o realismo. “Entre os 40 e os 60 é
normal” me disse, inocentemente, o oftalmologista. Então, além dos
compromissos, das perdas, da inevitável melancolia, também os olhos se perdiam
entre os 40 e os 60.
Não me importava
lançar mão de subterfúgio. O objeto me agradava. Mais nova, sonhara em tê-los.
Mas a verdade é que já não apareceria como antes. À sensualidade misturada com
inteligência, substituiría-se a imagem da mulher de meia idade e meia vista.
Havia uma vantagem em
envelhecer e tender, lentamente, àquilo que fui um dia. Era como se o tempo me
desformatasse. Aos poucos, ia perdendo os automatismos da pessoa responsável
que me obriguei a ser. Meus olhos, cansados daquilo que viam, tinham decidido
observar a existência de outra maneira. Levavam meu corpo com eles. Davam cabo,
sutilmente, da ordem. Talvez estivessem tomando o caminho da liberdade.
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