11 novembre 2018

Acheropita

Lembrei daquela noite, era festa da Acheropita. Um frio gostoso, noite limpa. Luzes das barracas de lona amareladas, as mulheres de avental, o cheiro da comida. Eu estava nervosa, carregando o segredo que já tinha decidido te revelar. Mas feliz. De estar alí, da atmosfera agradável, da sua compania (sempre, na sua compania), de estar usando um casaco de inverno e botas.
Você, como estava? De terno de lã. É só do que me recordo. Não sei se me olhava já desconfiado, ou se vinha sem pretenções nem idéias na cabeça. Sempre teve esse ar descompromissado. A Acheropita tinha sido sugestão sua. Podíamos nos perder entre as pessoas, conversar normalmente. Elas esbarravam na gente, sem que aquilo nos pusesse de mal humor. Faziam parte do cenário : riam e falavam alto, cantavam em dialeto, em italiano, usavam cachecol. Canções que ninguém mais cantava. Só na festa podíamos ouví-las. Nosso estranhamento mútuo se misturava à alegria alheia, se desfazía feito papel de seda.
Acho que não sabia à que vínhamos, mas sem rodeios, num momento me perguntou :
- Está doente?
Durante anos tomei essa frase por um pressentimento. Algo que nos ligava através das épocas. Eu te disse um “tudo bem”, feito de incerteza. “Preciso te contar uma coisa”. Aquilo me doía. Há mais de duas semanas tinha decidido te dizer. Ensaiei minha fala, escolhi as palavras menos perigosas. Isso era proibido. Punha tudo em risco. Punha em risco a ordem, a cronologia, a história. A nossa regra implícita. Não podia relevar nada, nem fazer a mínima menção, mesmo figurativa, mesmo tênue, do que estava por suceder. Mas você... não fosse clara, usando palavras concretas, palavras que quase pudesse tocar, não entenderia o que eu tinha a dizer.
- Vou embora.
Suspendidas. Misturaram-se um momento ao espaguete e ao molho de tomate, aos aventais, às cantorias. Ficamos em silêncio, um do lado do outro. Não podia fixar-te os olhos. Nem a boca, nem os ombros. Nem nenhuma parte de você. Nem mesmo a ponta dos sapatos. Qualquer movimento transformaria a situação numa cena. Então ficamos alí, a observar a alegria das pessoas. Fiz grande esforço, fiquei contida. Foi a sua tranquilidade que acalmou as poucos a minha ânsia. As palavras das pessoas agarraram a minha frase, a levaram embora.
Você, sempre impassível. Estivesse o mundo caindo aos pedaços, eu saberia reconhecê-lo. Agiria da sua maneira. Sem alarde, sem drama. O que teria feito se eu tivesse dito outra coisa? “Sim, estou doente. Incurável, vou embora”. Teria me abraçado, contra qualquer expectativa?
Talvez tenha guardado alguma lembrança do dia em que segurou as minhas mãos pela primeira vez... Eu não. Me parece feito enterrado no tempo, quase desfeito na poeira. Também era noite? Havia outras luzes na rua, piscando? Alguém nas calçadas?
- Foi decidido assim.
Me saiu, como uma forma de desculpa. Sentia que contrariava a ordem das coisas, o que esperava de mim. Não disse nada, mas era como se já me recriminasse e me esquecesse ao mesmo tempo. Eu ainda nem tinha desapararecido, não me via mais. Me arrependi. Criava uma cena. Sentia além da medida. Mas de uma coisa me lembro bem : você me olhou um pouco surpreso. Um instante... desaparecido na placidez do seu rosto.
Lembrei daquela noite, porque hoje à tarde nos cruzamos, sem que me reconhecesse. Tenho a certeza dos seus ombros, das pernas, apesar da barba por fazer e das roupas diferentes. Me preocupei. Há algum tempo me vinha em pensamento a seguinte impressão : a dor mudava a expressão das pessoas. Não se tratava da dor passageira, de um sofrimento físico. Era a dor profunda, da alma, que imprimia no rosto, no corpo, um efeito. Tinha dificuldade em reconhecer duas ou três pessoas com quem tinha convivido numa outra época. Olhava fotos antigas, compensava a imagem com sinais de envelhecimento, e ainda assim nada. Algo a mais, além dos quilos a mais, do cabeço branco. Uma dor profunda também mudava o jeito das pessoas. Tornava-as esquisitas. Comportamentos desencontrados. Foi olhando pra você, olhando para mim, que percebi ter atravessado uma etapa. Não via mais as premissas das alegrias e tristezas, mas as coisas feitas. Os fatos vivenciados. Nada de possibilidade, apenas a existência.     
Talvez fosse o caso. Talvez me olhasse sem me reconhecer porque a minha alma tinha se transformado depois de tanto tempo. Ou foi a sua?
Se tivesse podido escolher, teria ficado. A época, a estação, o lugar, tudo me era agradável. E tinha você. Sempre teve você, noutros tantos contextos, mas aquele, especificamente, me foi caro. Digo isso na tentativa de minimizar a dor que sinto em vê-lo hoje. Então não poderia ter escolhido ficar? Não somos nós, cada um, individualmente, que decidimos das nossas próprias existências?
Volto àquela noite. Acheropita conta a história da aparição da mãe de Jesus. E também, sobretudo, o seu sumiço. A pintura ficava na pequena igreja de Rossano. Pintada de dia, desaparecia à noite. Até que um dia uma mulher com uma criança no colo insistiu em entrar na igreja. A mulher não saiu mais, mas uma imagem fixou-se na parede, no lugar da pintura que desaparecia. Algo feito por mãos não humanas... A sua surpresa diante da minha frase “foi decidido assim” me intrigou. Não sei o que eu quis exatamente dizer, mas deve ter se perguntando. Você bem sabia que aquilo não era verdade. Que apesar dos compromissos e objetivos, sempre fomos livres para escolher a nossa missão, e o que, de fato, definiria o nosso próximo passo. No fim, a minha frase teve o efeito inverso do pretendido. Você sorriu, pois pela primeira vez viu em mim uma escolha.
Depois, tudo foi como antes. A gente se deu as mãos e andamos pela multidão, com a preocupação de não cruzar o olhar. Olhávamos para fora, para os outros, para a comida que dançava em grandes marmitas fumegantes. Dizíamos coisas bestas. Comemos um prato de espaguete, dificilmente, em pé, num prato de papel, com talheres de plástico. Me lembrei dos dois cachorros do desenho animado. Mas eu sabia que tudo o que pensava e sentia, tudo o que parecia fazer parte da realidade, devía-se muito à minha tendência em criar cenas e situações. Sempre gostei disso. Até um dia, há muito mais tempo atrás, você me disse algo assim : “devia ser escritora, gosta de inventar histórias”. Tomei o comentário por um elogio. Em outras épocas isso até foi uma vantagem. Mas naquele momento em que nos encontrávamos na Acheropita, a verdade se resumia àquilo que realmente sentíamos, sem subterfúgios, sem fantasias.
Foi assim que te vi : tomou a frase por uma decisão. Algo racional, condizente com os objetivos da minha missão, e até mesmo da sua. Não poderíamos continuar cruzando nossos caminhos indefinidamente. Como se isso não tivesse nenhum significado. Não que o fato de nos encontrarmos atrapalhasse em algo aquilo que devíamos realizar... mas ficava assim decidido.
À medida em que a noite passava, eu fui entristecendo. Não te veria mais com outras roupas, noutros contextos, falando outras línguas. Não revelávamos nenhum detalhe, não conversávamos sobre nada além de amenidades, tudo era apenas uma questão de presença. Quando nos encontrávamos, era como se tudo ficasse suspenso : a respiração, as ânsias e propósitos da Humanidade. Até os nossos objetivos, aquilo que aspirávamos através das nossas próprias missões.
No fim, para que serviam? Tantas idas e vindas... Gostava de sentir a passagem do tempo de maneira linear. Minuto à minuto. Gostava de estar, fisicamente, num certo lugar, pertencer à ele. Naquela época, naquele dado momento da História em que estávamos lado à lado na festa da Aqueropita, tinha começado a sentir crescer nos meus pés a ponta de duas raízes. Se ao invés de decidir partir, eu tivesse cultivado as raízes... Entraríam cada vez mais fundo na terra, até que eu não pudesse mais deixar aquele tempo-espaço. O que teria acontecido? Talvez eu tivesse murchado, apodrecido no pé.
O fato de não me reconhecer, a sua indiferença, como se eu fosse apenas uma passante, fizeram com que eu desviasse os olhos do seu rosto. E meus olhos, despropositadamente, pousaram nas suas mãos. Tinha algo na mão esquerda. Mexia num objeto. De maneira quase imediata uma outra imagem me veio à mente : eu e você, de pé, em frente à uma barraca. “Vou embora. Foi decidido assim”. O sorriso tinha desaparecido do seu rosto. Você fixava algo distante, algo que me era invisível. Sua expressão não me dizia nada. Nem contentamento, nem tristeza, nem resignação. Por isso, também naquela noite, não pude mais olhar para o seu rosto. Eu esperava algo. Um sinal mínimo, um espasmo no canto da boca, uma ruga na expressão que me dissesse “antes fosse diferente”. Não tanto “gostaria que ficasse”, ou outras afetações. “Antes fosse diferente”. Foi assim que meus olhos caíram sob sua mão esquerda. Os seus dedos fazíam rodar um anel. Acariciavam o pedaço de ferro. Tiravam ele do lugar, e o recolocavam de volta. Não me lembrava de tê-lo visto antes. Tinha segurado a sua mão esquerda umas tantas vezes, sem nunca ter percebido um anel em nehum dos seus dedos. Dançavam freneticamente. Peguei-lhe a mão, porque aqueles pequenos movimentos rápidos e repetitivos provocaram em mim certa preocupação. Foi a última vez em que nos demos as mãos.
Desta vez não terei a mesma coragem. O vento sopra nas nossas orelhas, aumenta a minha desesperança. Você deve ter percebido alguma intenção, ainda que eu não tenha feito um movimento sequer. Seus dedos se imobilizaram, de uma vez. Colocou a mão no bolso, no momento em que nossos olhos finalmente fazem afronta. Algo me lembra a maneira que tinha de considerar a minha presença. Nos imbuímos, como costumávamos fazer antes. Antes de eu ter escolhido ir embora, me desvencilhar das esperanças não ditas, da nossa familiaridade, de uma realidade em que podíamos estar, os dois, lado à lado. Inexistentes no espaço-tempo. Ou extremamente presentes um para o outro.
O que viu? Por onde passou? Porque os seus olhos me parecem dispersos? Como se tivesse sido fragmentado, e recolado numa nova configuração? Eu também não devo ter mais a mesma expressão. Não poderia inumerar as épocas, nem os acontecimentos na mão. Às vezes me acontece de duvidar. Afinal, para que servimos? Indo, vindo, acumulando conhecimento sobre a humanidade. Ultimamente me acontece de me sentir um aglomerado de coisas, amontoadas umas nas outras. Sensações. Não passamos disso. De todas as situações, poucas permanecem em mim.
Uma delas é o frio daquela noite. As nossas mãos dadas, como se pudessem ver mais do que nossos olhos, que já não ousavam mais se cruzar. O cheiro do molho de tomate. A cantoria. Num movimento imprevisto você tira a mão direta do bolso, e me estende um objeto. Um anel. Não o anel que leva na mão esquerda, cujos dedos ainda o fazem rodar, freneticamente. Trata-se de um segundo anel.
O que teria acontecido naquela noite, durante a festa da Acheropita, se eu tivesse posto o anel no meu dedo? Atravessando os acontecimentos, seria possível que eu guardasse a impressão da sua presença? Sonharíamos um mesmo sonho? Nos veríamos translúcidos ? A verdade é que ainda que não tenhamos trocado nada além de algumas palavras, e o contato das nossas mãos, eu trouxe você comigo em cada fragmento de tempo. Como uma fotografia. Até este último momento.            


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