25 janvier 2019

Depois do pé de vento

Surpreendentemente, às 7h13 da manhã de uma terça-feira, ao sair por uma das portas automáticas do metrô, um cheiro familiar me veio às narinas. Tão forte, e tão cheio de passado, que me obrigou a parar alguns instantes na plataforma. À minha volta os passantes começavam a se agitar, imprimindo movimento na amálgama que dalí uma hora tomaria os corredores, as portas, as saídas, as escadas. Polvilho doce. Sabia da impossibilidade da proveniência do cheiro. Não se tratava de uma padaria, ou quiosque assando massa. A amêndoa, a manteiga, o pistache, a baunilha dormiam nos fornos daqui. Mas nenhum outro ingrediente podia provocar em mim a nitidez de vinte e dois anos atrás. Na época, passava por outros corredores, eram outras manhãs. A sensação térmica participava da impressão de voltar no tempo. Ainda que não pudesse ver o céu, o vento carregado de chuva atravessava os corredores. Muitas vezes já tinha sentido o vento passear pelas entranhas do metrô. Isso mais me incomodava. O frio subia pelas frestas da calça e do casaco, pela espinha, provocando pequenos arrepios. Dessa vez tinha sido diferente. O estremecimento deveu-se às lembranças. Tão profundamente enraizadas num canto do corpo, no limite do esquecimento. Até aquele momento : tinham emergido de uma vez, chegado à tona feito evidência.
Uma menina de mochila nas costas. O sol nas costas. Saíndo das entranhas da terra, do ar viciado e condicionado. O calor da superfície lhe é extremamente agradável. A mochila é vermelha, a calça verde, usa um rabo de cavalo, talvez uma tiara colorida e sapatilhas chinesas pretas. Seus pés estão a tocar o chão, os sapatos quase não tem sola. No pulso esquerdo um relógio colorido, que ela pode montar e desmontar, segundo seus humores e preferências. Tem uma carteira de borracha que fecha com velcro, e uma agenda grossa, cheia de papéis de bala, bilhetes, fotos e adesivos colados, ou presos por um clips. Mas quase nenhum compromisso. Olha as pessoas à sua volta, tem a impressão de estar sempre no mesmo lugar. Vai e vem, e está na mesma saída de metrô, no mesmo ponto de ônibus, nas mesmas ruas. Vive bem, não é extremamente feliz nem extremamente triste. E suas felicidades e tristezas são simulacros das verdadeiras felicidades e tristezas. Disso a menina tem certeza. Vive apenas um ensaio, um esboço do que realmente lhe espera. Por enquanto, não tem obrigação de ir à lugar nenhum, como se passeasse constantemente.
É comovente. À sua vista, temos os olhos humedecidos. Não sabe o que a vida lhe reserva, mas espera tudo da vida. Um amor avassalador (sofrido, melancólico, completo). Responsabilidades e horários. Descobertas. Tédio. O fim da fantasia. Até um drama. Não pretende passar a existência sobrevoando e observando, evitando a fadiga. Deseja ardentemente comprometer-se, intrometer-se, se lambuzar. Está pronta para trocar este momento em que sai do metrô, com o sol lhe esquentando a alma, a agenda vazia de compromissos por um lugar no meio do pé-de-vento.  
7h16, terça-feira. Alguém esbarra nas minhas costas. A vida foi aquilo tudo. E a única coisa que guardo na memória é a impressão que me deixou o cheiro familiar do polvilho doce.  

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