Por vezes a palavra não serve para dizer aquilo que é,
e poderia ser dito. Por vezes ela é máscara, subterfúgio. Então, algo no mínimo
curioso acontece: procuramos um sentido por detrás do sentido da palavra. É
como procurar um diamante numa caixa de brilhantes de plástico. Uma imagem
dissimulada numa pintura. Uma constelação na morfologia astronômica. Alí estão
as frases, numa lógica imparável. Alí está o sentido das palavras, ao menos o
primeiro, ao nosso alcance. Logo as palavras começam a criar imagens e
sensações. Talvez deva ater-se à elas... O que se observa da mensagem é aquilo
que ela realmente contém?
Este foi o meu trabalho durante anos a fio; desvendar
o conteúdo por detrás das palavras. O nome exato da profissão : decifrador de
palavras. Um “métier” para poucos, reservado àqueles cujo espírito crítico e
sentidos aguçados são pontuados por uma suspeita de sutileza. Nada de
romantismo. Nada de sentimentalismo. Uma natureza sentimental, por mais
agradável e próxima da essência das coisas, não daria para tal prática. Porque
decifrar uma mensagem não consiste em mergulhar em palavras, e sim observá-las
de certa distância, tal um cientista escrutando o comportamento de uma nova espécie.
Entrever aquilo que elas tem a intenção de significar, sem interceder na
dinâmica que lhes é própria. Tudo reside no equilíbrio, e não na intensidade.
Um espírito perspicaz, um olhar afiado; tais são os elementos que fazem de
alguém um bom decifrador de palavras. Somado a estas qualidades, o fato de tal
atividade dar-se numa pequena sala simplesmente mobiliada, (uma mesa, uma
cadeira, e um cano) fazem com que a ocupação esteja envolta numa aura de
mistério com ares de sabedoria. Que segredo lhes faz entrever, aos decifradores
de palavras, aquilo à que realmente fazem referência? Definitivamente,
tratava-se de uma bela ocupação, ainda que os preceitos da época atual não
permitam que se a aprecie como se deve.
O meu método sempre consistiu em tomar as frases por
esboços. Como se a escrita voltasse à sua origem, cada papel que se apresentava
a mim não passava de um desenho. Minuciosamente, eu lia, relia, separava,
sublinhava, com o único objetivo de saber exatamente o que as palavras queriam
dizer. O meu maior mérito era trazer à tona uma verdade, apenas insinuada pelos
símbolos. Ainda que algumas mensagens fossem minimamente encobertas, na maioria
das vezes o escritor enterrava o que tinha a dizer tão profundamente que o meu
trabalho se tornava espinhoso. Inúmeras vezes fui tomado pelo encantamento diante
de um mistério. Como se à mensagem do escritor se misturasse uma poeira; algo surpreendente,
sobrevindo da conjunção de suas próprias palavras. Durante o árduo processo,
imaginava o conteúdo verdadeiro abatendo-se sob aquele à quem era destinado.
Tal uma onda, levando as certezas pro fundo do mar, trazendo novos sentimentos
à tona. Não que se trata-se, invariavelmente, de conteúdo agradável. Mas tinham
o mérito, uma vez decifrados, de não apresentarem dúvidas. Proporcionavam aos
destinatários a clareza dos sentimentos; algo que se transportava através de
palavras, do mais profundo de uma alma à outra, sem mais interferências. Eu me
via como um técnico, manejando cabos, ligando uns fios nos outros, para que dois
indivíduos fundassem uma comunhão.
Mas a técnica, neste caso, movimenta-se suspensa por
fios ocultos. Um decifrador deve escutar o sussurro de uma musa, ele deve saber
atentar ao invisível. Prestar atenção nas conexões, nas relações, procedendo da
maneira mais delicada possível. Um pé depois do outro. As letras, postas
juntas, não são como a fôrma de um bolo, sobre as quais a massa daquilo que se
quer exprimir se esparrama. Uma mensagem é um conjunto de símbolos que dependem
uns dos outros, como se estivessem em órbita. E sem que se possa decifrar a
razão, como pequenos astros, estão ligados por uma força tão misteriosa quanto
a atração. E assim formam um universo.
No entanto, apesar de tamanha importância, a profissão
caiu em desuso. Não saberia dizer em que momento a verdade começou a tomar
outra forma. O fato é que antes que eu pudesse antecipar uma espécie de
obsolência, o meu trabalho perdeu o interesse, e qualquer tipo de eficácia. As
pessoas deixaram de precisar dos meus serviços. Tendo a crer que essa mensagem,
a única que me teria sido essencial, eu não soube decifrar. As pequenas salas
foram ficando vazias, e as mensagens, escassas.
Hoje em dia, nada se propõe à ser decifrado, e às
vezes me pergunto : “ Será que tudo não passa disso?”. A vida, simples, como são simples as coisas
que se conta da vida? Talvez essa seja a verdade do mundo. A tal mensagem que
eu nem soube entrever... “Nada existe por detrás do que se vê”. Nenhum outro
sentido. Tudo plano, feito prato raso. A realidade estatelada, onde cada um é a
própria imagem. A forma se funde ao conteúdo, o discurso não é mais instrumento.
Como se, por detrás das palavras que se diz, não existisse ninguém, nenhuma
subjetividade. Assim, tudo está aí. Falado, explícito, escancarado. Tudo
escarrado. De um modo geral as pessoas se acomodaram bem com essa versão da
realidade. E se ela não me parecesse suspeita, eu me pergunto se desfrutaria
com grande prazer de uma existência sem dúvidas. A comunhão com algumas
pessoas, as mais íntimas, seria de certo agradável. Telepatas, teríamos a
certeza dos sentimentos, assim como sentiríamos tristeza em vê-los esmoecer... Mas
qual o interesse em saber a intenção exata de um pintor, a opinião secreta de
um vizinho, a experiência real de um desconhecido? O mistério do outro parece
não interessar mais ninguém. Nada sobra para imaginar. O mundo se expondo,
despudorado, exagerado. Onde está a poesia do que apenas se adivinha, ou
entrevê?
Ainda que goste do meu trabalho, pessoalmente, o
exercício de procurar um sentido para as palavras, buscar o invisível, o indizível,
nestes pequenos e poucos fragmentos que chegam até mim torna-se algo penoso à
medida em que o tempo passa, e que envelheço. No começo, quando ainda me
encontrava nesta pequena sala de paredes brancas, esperava ansiosamente que um
pedaço de papel caísse do tubo cuja boca colada na parede era a única abertura
ao mundo que se oferecia a mim. Mas hoje em dia ando pelas ruas, subo e desço
as escadas, pego o metrô, esbarro nas pessoas, de maneira descomprometida. O
isolamento era uma condição imprecindível. Porque as palavras, uma vez que
colam nas retinas, começam a imprimir anseios, certezas, desejos, tristezas no
espírito. Leia uma carta uma vez, e a mensagem que ela transmite impregna a
alma de imediato, feito cheiro. Leia a carta uma segunda, uma terceira, uma
décima vez. O sentido já é outro. Sofreu mudanças, às vezes fundamentais,
transfigurou-se bem alí nas nossas mãos. Exatamente a mesma carta. Mas nos dias
de hoje, como evitar que o barulho da realidade venha interceder na transmissão?
O silêncio da alma. O fato de encontrar-se só, como veio ao mundo, e como
partirá. Procurar no mais profundo aquilo que se escuta, quando lê. Descartar o
supérfluo, o que é enfeite. Não sobrepor ao que já está posto, ou juntar coisas
rapidamente construídas à palavra escrita... os sentidos se aguçam com a
introspecção. Na época, o isolamento era uma parte da solução.
A pequena sala continua no mesmo lugar, alí onde pela
primeira vez me sentei. No entanto suas paredes me parecem cada vez mais
amareladas. E pelo tubo grudado na parede ainda caem pedaços de papel com
palavras, escassos. Palavras prontas à execução. Ou talvez a ganharem o sentido
que gostaríamos de dar à elas, sem necessariamente tocar a mais ínfima verdade.
Nunca conheci as pessoas para quem decifrei as mensagens. A imparcialidade é
uma das condições fundamentais da profissão. Nunca nem soube se quem me pagava
era aquele que recebia, ou aquele que mandava palavras. Apenas curto um
histórico, um contexto, me permitiam representar aquele que escrevera a
mensagem, e aquele à quem ela era destinada.
Tenho a impressão de ter-me tornado apenas passado. Um
fragmento do tempo. Nem uma entidade, nenhuma inspiração, nenhuma musa. Nem uma
lembrança memorável, um arrependimento ou um sorriso. Nem simplesmente uma
pessoa por quem temos carinho e apresso. Fui, e sumi. Já não há razão para
saber como ando, como estou, se me realizo, ou me apago com o passar dos anos.
Eu já sou invisível. Já não há mais palavras a decifrar, já não há mais nenhum
sentimento escondido, mais nada. Apenas eu, fragmento do tempo, de uma
transparência sem igual. Ando nas ruas, esbarro nos passantes, retorno à
pequena sala de paredes amarelas. Uma ou outra frase deslizam pela boca do
tubo. São como todas as outras palavras, quaisquer. Tem o sentido que se
propõem a ter, num primeiro e único momento. Talvez seja essa, a razão do meu
esquecimento. Hoje em dia só existe imediatez, e os instantes presentes. A
realidade é apenas aquilo que acontece, no momento em que acontece. As palavras
não significam nada além daquilo à que elas se propõem, impessoalmente, a
significar. Isso me faz pensar que com as pessoas tudo deve acontecer de
maneira similar. Nós não somos nada além daquilo que significamos uns aos
outros, no momento único em que nos esbarramos. Depois, nada mais.
O que faz um decifrador de palavras das próprias
mensagens, aquelas que lhe são destinadas? Visto que não há, nesse caso,
imparcialidade, nada posso produzir de acordo com as regras do ofício. Mas isso
nunca me impediu de exercer sobre as minhas próprias mensagens aquilo que
exerci sob tantas outras. Tomei as minhas próprias mensangens por desenhos. As
que recebi, mas também as que escrevi. Porque afinal o leitor e o escritor são
como duas peças de um quebra-cabeça. Um não existe sem o outro. Obedecem à
regras implícitas, ao tempo próprio do texto. O leitor e o escritor trançam os
fios do tecido mais delicado do espírito.
Devia ter me consacrado à pintura, à música, à dança.
À tecidos que permitem à alma se desvencilhar das agulhas. Devia ter me
esforçado em mexer com matérias feitas para se perder na consistência e no
volume de maneira concreta. Sentado na pequena sala, olhando para os textos que
me cabiam decifrar, ou para as mensagens que eu mesmo escrevia, me sentia numa
galeria. Como se observasse uma obra, a admirá-la, ou achar nela o absurdo, o
contraditório, o reprodutível. Mas fosse no ato de escrever ou de decifrar, não
conseguia me despir da fantasia da razão. Fazia um esforço para esquecê-la. E
no entanto, era da razão que me servia, ao mesmo tempo em que tentava escapar
dela.
A aspiração daquele que decifra : olhar uma mensagem,
como uma obra de arte, buscando um sentido, ou aquilo que ela traduz da
realidade, além das figuras alí expostas, e dos próprios traços.
Ser um pedaço do passado nessa realidade imediata
significa estar irremediavelmente condenado à inexistência. Ando no meio da
multidão feito assombração. Sinto fome. Não é falta de comida, mas de algum
outro elemento inalcançável. A tarde apagada pede que se acenda uma lâmpada
artificial. O piscar do neon torna a visão embaçada. O meu corpo todo sente a
ausência, mas existe um certo reconforto na melancolia. Como se a opacidade me
envolvesse, sem que nenhuma pequena parte de mim ficasse de fora. Essa é a
maneira que encontrei de sentir minha própria integridade.
Como dizia, não sei exatamente em que momento tudo se
tornou evidente, e oco. E eu ficando cada vez mais para trás. No entanto, fazer
a forma coincidir com o conteúdo não tornou as coisas mais palpáveis. Assim
como nos tempos em que exercia a atividade de decifrador de palavras, sinto
como se realidade ainda estivesse por acontecer. Como se algo estivesse
esperando por ser revelado.
Esporadicamente, quando me sento na sala de paredes
amareladas, e uma ou duas mensagens caem da boca do tubo, ainda encerro a
intenção de descobrir, entrever, desvendar. E minha persistência me causa
orgulho. Porque aquele que nem se dá ao trabalho de se atardar numa frase, e
repete à si mesmo incessantemente “tudo é evidência”, não faz nada além de
inspirar e espirar um ar viciado e ordinário.
Nota
encontrada num papel esvoaçando num dos tubos de mensagem : “Ainda que não
tenha perguntado, jogo umas palavras para o alto, feito arroz em casamento, para
dizer simplesmente que continuo aqui, em vida. Isso parece uma evidência. Lendo
essa mensagem, há de pensar “bem sei que alí está, senão não tinha escrito
nada”. Minha individualidade, como o meu corpo, continuam presentes, bem aqui. Gostaria
de fazer uso d’outros subterfúgios, algo além da materialidade, para expressar
o intraduzível. Fazer das letras pequenos símbolos desprovidos de razão, que eu
misturaria feito cores num pincel. Minha mensagem seria como um quadro pronto
para enfeitar o hall de algum hotel. Mas estaria à vista, coisa feita e pronta,
à mostra. Ou esquecendo-me nestes pequenos desenhos transformaria as letras
numa só textura, e o resultado seria um monocromo. A liberdade da representação
é, no fundo, se deparar com aquilo que se quer ardentemente encontrar...”.
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