A visão da rua se assemelhava ao fim do mundo.
Mas Vânia já conhecera tantas outras visões estranhas. A rua vazia, entrevista
através do fino véu da garôa, lhe causou desalento. Algumas poucas casas
fechadas de um lado e outro. E à sua frente, a mata, cada vez mais densa. Havia
mais de três semanas – no mínimo três semanas – que a chuva tinha começado a
cair. Começara estrondosa, tarde e noite, durante uns dez dias. E agora,
passado o aguaceiro, caía fina. Antes fosse o sinal de que aquilo acabaria
logo, mas ao contrário, dava a impressão que o mundo todo estava se afogando.
Vânia preferia sentir a violência da água. Nem os cachorros. Em tempos normais
ninguém lhes dava bola. Andavam vagabundos, abanando o rabo sem razão,
quemandando um qualquer coisa pra comer. Caminhando debaixo daquela chuva
insistente, Vânia sentiu saudade dos cachorros. Não de um em específico, que
não lhes tinha afinidade. Queria a todos os vira-latas, como se fossem uma só
presença.
Seguia em direção à rua 27 já pensando na casa da
dona Marina. Apertou o passo. Em tempos normais, fazia uma casa por dia, senão não
dava conta. Por exemplo, a “casa” da rua 27 : quatro banheiros, cinco suites,
duas cozinhas, três salões, e a sala de jantar. Vânia tinha acordado mais cedo,
decidida a passar na rua 27 e na rua 14. Porque alguma coisa tinha acontecido
desde o aguaceiro. Ninguém mais aparecia, as ruas e as casas estavam paradas
feito cidade fantasma. O trabalho todo ia ser a umidade, mas os cristais, os
vidros, as louças, os azulejos pareciam mais limpos que de costume. E o tempo
perdido no caminho? Cheio de lama, Vânia tinha barro até nos cabelos porque o
chinelo grudava na terra. Abandonara o par de tênis. Há uma semana usava a
mesma bermuda de lycra, o biquini, e uma camiseta rosa choque. Já não se importava
mais com o suor. Vinha assim, porque não tinha mais ninguém ali para ver como
se vestia.
Nem tinha pego numa vassoura, já se sentia
cansada. Tentou ouvir um barulho qualquer, um pássaro, uma palavra, mas só
conseguia ouvir a chuva batendo nas folhas. Por vezes mais intensa, depois
esmoecida. Na rua 27, parou na frente do portão da casa vizinha. Ao avistar a
churrasqueira, a imagem do cozinheiro estrangeiro surgiu, misteriosa, como
quando o viu pela primeira vez.
- Você quer experimentar?
- Não sou convidada, trabalho aqui. Vim de
extra.
Nunca tinha posto algo igual na boca. Uma
textura agradável, apesar de macia, o gosto salgado, o ácido do limão, o alho
misturado com algum outro tempero no qual não podia colocar um nome.
- Gostou? É comida francesa.
Vânia ficou sem graça com o olhar do
cozinheiro. Agradeceu em voz baixa, já de saída, dando-lhe as costas
bruscamente. Vânia era assim com as coisas, queria distância daquilo que não
lhe cabia. Talvez porque via muita coisa. Coisas esquisitas, abundantes, muita
fartura. E coisas constrangedoras.
Lembrou com nostalgia das manhãs de
sextas-feiras. Aquele lugar tornava-se o alvoroço. Na véspera do fim de semana
a maioria das casas se preparava para receber os proprietários. Feito gente
antes de um encontro, se arrumavam, esperando os donos, a família, amigos dos
filhos dos donos. Portas deviam ser abertas, armários e gavetas limpos, as
mesas dos jardins montadas, as louças lavadas... “é preciso tirar o mofo
Vânia!”, lhe dizia dona Marina. E já no fim do dia os carros formavam fila na
entrada do condomínio, ocupando as ruas com música alta, falatório, agitação.
Alguns chegavam até de maiô, pranchas penduradas nos carros altos. Traziam o
cheiro de cremes caros e coisas importadas.
“Tola! Fico aqui pensando em nada...”. Molhada
dos pés à cabeça, mexeu no bolso direito e tirou o chaveiro de metal em forma
de calda de baleia. Casas grandes pareciam exigir chaveiros imponentes, que lhe
pesavam nos bolsos. Entrou na casa da rua 27 pela porta da frente.
Uma vez, entrando por essa mesma porta, deu de
cara com um homem vestido de urso. Já era noite escura, Vânia tinha visto o
carro de Melissa, filha do seu Olavo, e mais dois, no estacionamento. Vinha
apenas buscar o material de limpeza, para não ter que voltar no dia seguinte, tinha
marcado um extra numa casa do outro lado do condomínio. Soube que era um homem
por causa da voz. Não tirou a máscara.
- Vim pegar meu material.
- Onde está?
- Na lavanderia.
- Passa pela cozinha. Depois saia pela outra
porta.
A presença, imensa, lhe acompanhou até a
cozinha, como se a escoltasse. Vânia sabia que o homem queria evitar a sala e a
área da piscina. Não era ladrão. Ninguém do vilarejo se atrevia a roubar o
condomínio. Vânia teve medo, como se estivesse na presença de um urso de
verdade. Há quantos centímetros estaria de suas costas? Pelo tamanho, devia ter
tanta força, seria capaz de quebrar-lhe o pescoço num gesto. Ao chegar à
varanda o homem estendeu a mão na direção de Vânia, para que ela lhe desse as
chaves, e abriu a porta do depósito. Esquivou o corpo. E com a mão direita
ainda na maçaneta, num movimento rápido, fechou a porta com Vânia dentro. O
metal tintinou no trinco. O alívio de Vânia foi imediato. Estava no escuro, mas
conhecia aquele cômodo de olhos fechados. Preferia a porta trancada pelo lado
de fora àquela figura estranha. Ouviu um barulho de armário e copos na cozinha.
Depois fez-se o silêncio. Vânia passou a noite no quartinho. Uma hora a chuva
começou a cair forte, respingando água pela janela, mss ela ficava muito no alto
para que pudesse alcançá-la. “Uma casa feita para homens urso”. Foi só no dia
seguinte que Vânia se arriscou. Ouvira um salto caminhando pelo chão da
cozinha. Começou a bater na porta. Poucos instantes depois, uma mulher de
calcinha e sutiã, e cabelos desgrenhados abriu a porta. Sem surpresa, deu
caminho para Vânia passar e pegar o molho de chaves pendurado no trinco. Passou
pela mulher, tomando cuidado para não tocá-la, e saiu às pressas. Ao atravessar
a sala, entreviu copos e cinzeiros, roupas jogadas no chão. Teve tempo de
perceber três corpos de mulher no sofá, nús. Tinham os olhos fechados. Um deles
era o corpo de Melissa.
Terminada a limpeza, Vânia demorou em fechar as
telas contra mosquitos, persianas e portas. Curiosamente, nem os insetos
entravam mais pelas frestas. Talvez fosse a escassez de comida. Na cozinha,
usou o último coador de café. Perdia-se em considerações inúteis. Devia fazer
pelo menos duas semanas que o caminhão de lixo não entrava mais no condomínio. Onde
estaria Melissa naquele momento? Ou seu pai? Ou todas as pessoas que costumavam
aparecer nas sextas-feiras, e desaparecer nos domingos? Sentindo um cansaço
súbito, foi até a piscina. Tinha o fundo verde. A água turva mexia-se com o
cair das gotas, agora grossas. Vânia deitou-se na rede, e pela primeira vez,
dormiu em serviço.
Acordou assustada. Teve a impressão que alguém
lhe observava, com ar desaprovador. Saiu sem trancar o portão, apressada, desencorajada.
As janelas das casas continuavam fechadas, como se lhe virassem a cara. Tudo
ali dentro devia estar mofando. Tudo recoberto por pequenas manchas cinzas,
tomando tapetes e cortinas. Vagou pelas ruas, até chegar na 14. Vinha com os
pés cheios de lama.
Lembrou do primeiro dia na casa de dona Marina.
Da elegância que se desprendia até mesmo dos panos de secar. Ela não suportava
o rádio. Quando algum som vinha quebrar o silêncio da sala de paredes brancas, Vânia
sabia que se tratava do patrão, impondo presença. Parecia querer encher o
espaço, ocupar um vazio. Dona Marina já tinha chorado em seus braços. Arrumavam
as toalhas no armário, quando num gesto inesperado a mulher escondeu o rosto
nas mãos, e começou a soluçar. Vânia lhe ofereceu os braços. A dona parecia
afundar cada vez mais o rosto, como se quisesse limpar as lágrimas, ou
atravessar a blusa do uniforme. O colo de Vânia foi ficando molhado. Dona
Marina saiu correndo, e quando se encontraram no andar de baixo, continuou a
conversa. Como se nada fosse.
- Isso aqui está virando um clube. Quantas
pessoas estão na casa da rua 27? São mais de dez, com certeza. Toda vez que
saio para a minha caminhada estão na praia, bebendo. Não sabem fazer outra
coisa.
- A filha do seu Olavo é muito respeitosa.
- Todos somos muito respeitosos, Vânia... o
problema são as companhias.
Aquilo, um dia, voltaria ao normal. Resolveu
começar pelo quarto do casal, subiu ao segundo andar e ligou o ar condicionado.
Vânia suava mais do que o habitual. Esfregou os cantos com força, os dedos lhe
doíam. Vânia percebeu que os tinha vermelhos, em carne viva. Largou a escova e
o balde no chão, desceu à cozinha e abriu a geladeira. Estava cheia. Começou a
colocar em cima da bancada potes de manteigas, molhos, vidros de azeitonas
pretas e alcaparras, marrom glacê, garrafas de vinhos, cervejas, queijos
estragados... abriu o bocal que lhe pareceu mais vistoso. Pequenas bolinhas
transparentes, feitos pérolas de sagu, encheram a boca de Vânia do gosto do
mar. Estouravam entre os dentes. Tirou a rolha de uma garrafa com custo, tomou
dois goles no gargalo.
Entrou na sala de jantar. Desde que a chuva
tinha começado, era a quarta ou quinta vez que abria as portas da varanda. De
longe os copos pareciam impecáveis, assim como as portas de vidro. Toda aquela
louça. Tudo na casa era tão rico e limpo.
Talvez por isso Vânia tenha sentido a presença.
Ao dar uns passos em direção a cozinha, percebeu a mancha. Bem no meio da
parede, maculando o branco linho. Primeiro achou que se tratava de um novo objeto
de arte, algo excêntrico, e essa possibilidade lhe trouxera um efêmero
reconforto : então alguém tinha entrado e posto o objeto na parede. Mas logo
deu pelo engano : tratava-se de uma enorme nódoa marrom esverdeada, como se
alguém tivesse pincelado a parede de lodo. Vânia ficou a observar a mancha,
estarrecida. A umidade tinha se infiltrado por todos os cantos. A água invadia
tudo, ia desfigurando a realidade, deixando-a cheia de buracos... A ausência do
lixeiro, os seguranças da guarita, as indas e vindas dos proprietários, a ordem
das coisas. Tinha passado os últimos dez anos tentando manter as roupas,
móveis, cantos de parede brancos, e a louça transparente. Tinha feito um
esforço, às vezes às custas de cansaço, dor nas costas, de alguma raiva e
decepção, para manter as coisas no devido lugar. Respeitara todas as regras :
primeiro o pó, depois a cândida, chegar na hora, fazer-se invisível, não
reclamar mais do que lhe era devido, esvaziar os lixos dos banheiros duas vezes
por dia, não se apropriar de nada que não lhe fosse oferecido, abrir as
gavetas, lavar toda semana a louça ainda que não tivesse sido usada, esfregar
os azulejos com uma escova de dente, não comentar aquilo que via, não dar
opinião, não misturar roupa de cama com roupa íntima, receber ordens dos
convidados como se fossem seu patrão, não comentar a própria vida, não comer nada
importado da dispensa, da geladeira ou dos armários...
Se Marina a visse agora... A mancha já tinha
ocupado quase toda a extensão da parede, tocava a cristaleira, tinha encoberto
a janela, escurecendo a sala. Uma vegetação espessa, curta, crescia em volta de
um miolo amarelado. Pequenas protuberâncias marrom-alaranjadas se sobressaíam. Mais
Vânia as olhava, mais tinha a impressão que se mexiam.
Saiu para a piscina. Jogou o balde de cloro
diretamente no chão, onde enormes poças se formavam. Queria acabar com aquele
aguaceiro. Passou o rodo uma, duas, dez vezes. “De que adianta?!?”. Jogou o
rodo longe, entrou na sala espalhando água pelo solo. A vegetação bloqueava a
entrada da sala de jantar, se tornava cada vez mais exuberante. Como se o lado
de fora começasse a tomar conta do lado de dentro. Pensou nas tolhas, brancas e
macias. Nunca tinha visto toalhas iguais àquelas. “Devem estar cheirando mofo.
Preciso alcançá-las antes que a mancha bloqueie a passagem”. Vânia subiu ao
segundo andar e resolveu encher a banheira com água quente e espuma.
A chuva caía mais forte, mas o banho tinha lhe
esquentado o corpo. Secou os cabelos, colocou um vestido branco e sapatos do
armário. Tentou descer as escadas, mas deparou-se com a densa vegetação. Esgueirou-se
até a cozinha, o vestido manchando de barro e musgo. Com custo abriu a parte de
cima da geladeira. Pegou duas garrafas de champagne. Ali também o lodo encobria
as paredes, entrava pelos armários. Se apropriava da casa. Vânia chutou a porta
com o pé, e foi de encontro à chuva, saltitando. “Hoje é ano novo!” gritava às
ruas vazias. Sem se dar conta, caminhava rumo à saída.
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