Tinha cara de fim de mundo, feito em filme.
Reprisado incontáveis vezes na sessão da tarde, situações improváveis pipocam
no espírito : penúria nas prateleiras dos supermercados, barricadas nas casas
invadidas por grupos de pessoas desconhecidas, que seguram paus e outros
instrumentos feitos para jardinar, e que na situação de fim de mundo ganham
outras funções. Ruas sem sinalização, pessoas vulneráveis implorando por ajuda.
Sobrevivência exige, cada um se desfaz da empatia de maneira penosa (em maior
ou menor grau). Lembranças remotas da vida anterior, não mais antiga que dois
ou três dias, mas extremamente distante do momento atual. O momento atual, que
é apenas o momento que conta. O futuro, inesperável, não tem mais nenhum papel
na sobrevivência. Ou melhor, apenas aquelas poucas horas seguintes tem algum
significado em meio ao caos. Proteger-se ao máximo. Vivenciar a unidade extrema
com o corpo, para evitar que a subjetividade se apague e dê lugar ao vazio. Evitar
o contato do corpo com as superfícies infectadas, com o outro. Nenhuma
organização é mais a mesma : as ruas não tem mais sentido certo, o bairro é um
amontoado de pedaços de material e casas abandonadas, não há mais conteúdo por
trás das palavras “cidade”, “país”, “organização internacional”. Apenas
subsistem os indivíduos, acolados de dois ou três próximos, às vezes de um
animal de estimação. Certamente cachorros, porque gatos e passarinhos correram
de encontro à liberdade. A grande alegria da fauna e da flora, imunes ao vírus,
livres do ser humano, de suas invenções, de seus efeitos. Nessa situação
extraordinária, impensavelmente real, cada um faz um balanço do que viveu. Enfim,
mais daquilo que deixou de viver, do que o que de fato experimentou na curta
existência. Porque com exceção das pessoas muito idosas, todos pensam que a
própria existência foi curta. Mecanismo de sobrevivência? “Devia ter feito
isso, ido aquele lugar, ter sido mais isso ou aquilo...”. Uma lista incansável
de arrependimentos. Imagem patética : sentados nos escombros do que antes tinha
sido uma loja, numa pedra na clareira de uma floresta, dentro do carro,
indivíduos perdem o olhar ao redor, pensando naquilo que não foram, no que não
fizeram...
O espírito vaga por extrapolações. Cenários
catarses. Aqueles que podem, esperam, ocupando-se com tragédias e amenidades. Piadinhas
sobre os filhos insuportáveis, videos sobre as informações que nos escondem,
falsos remédios e falsos números, sobre a economia, sobre histórias dramáticas,
sobre lives e imagens das pessoas de pijama, sobre artistas que pela primeira
vez limpam a própria casa, sobre os mortos, sobre comida de restaurante
entregue pelo delivery, sobre políticos incompetentes, sobre soluções incertas.
Os outros trabalham. O resto (provavelmente a maioria) pensa como vai fazer pra
pagar as contas, comprar comida, achar emprego. Até o fim do mundo é luxo.
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire