01 mai 2020

Simulacro do fim do mundo

Tinha cara de fim de mundo, feito em filme. Reprisado incontáveis vezes na sessão da tarde, situações improváveis pipocam no espírito : penúria nas prateleiras dos supermercados, barricadas nas casas invadidas por grupos de pessoas desconhecidas, que seguram paus e outros instrumentos feitos para jardinar, e que na situação de fim de mundo ganham outras funções. Ruas sem sinalização, pessoas vulneráveis implorando por ajuda. Sobrevivência exige, cada um se desfaz da empatia de maneira penosa (em maior ou menor grau). Lembranças remotas da vida anterior, não mais antiga que dois ou três dias, mas extremamente distante do momento atual. O momento atual, que é apenas o momento que conta. O futuro, inesperável, não tem mais nenhum papel na sobrevivência. Ou melhor, apenas aquelas poucas horas seguintes tem algum significado em meio ao caos. Proteger-se ao máximo. Vivenciar a unidade extrema com o corpo, para evitar que a subjetividade se apague e dê lugar ao vazio. Evitar o contato do corpo com as superfícies infectadas, com o outro. Nenhuma organização é mais a mesma : as ruas não tem mais sentido certo, o bairro é um amontoado de pedaços de material e casas abandonadas, não há mais conteúdo por trás das palavras “cidade”, “país”, “organização internacional”. Apenas subsistem os indivíduos, acolados de dois ou três próximos, às vezes de um animal de estimação. Certamente cachorros, porque gatos e passarinhos correram de encontro à liberdade. A grande alegria da fauna e da flora, imunes ao vírus, livres do ser humano, de suas invenções, de seus efeitos. Nessa situação extraordinária, impensavelmente real, cada um faz um balanço do que viveu. Enfim, mais daquilo que deixou de viver, do que o que de fato experimentou na curta existência. Porque com exceção das pessoas muito idosas, todos pensam que a própria existência foi curta. Mecanismo de sobrevivência? “Devia ter feito isso, ido aquele lugar, ter sido mais isso ou aquilo...”. Uma lista incansável de arrependimentos. Imagem patética : sentados nos escombros do que antes tinha sido uma loja, numa pedra na clareira de uma floresta, dentro do carro, indivíduos perdem o olhar ao redor, pensando naquilo que não foram, no que não fizeram...
O espírito vaga por extrapolações. Cenários catarses. Aqueles que podem, esperam, ocupando-se com tragédias e amenidades. Piadinhas sobre os filhos insuportáveis, videos sobre as informações que nos escondem, falsos remédios e falsos números, sobre a economia, sobre histórias dramáticas, sobre lives e imagens das pessoas de pijama, sobre artistas que pela primeira vez limpam a própria casa, sobre os mortos, sobre comida de restaurante entregue pelo delivery, sobre políticos incompetentes, sobre soluções incertas. Os outros trabalham. O resto (provavelmente a maioria) pensa como vai fazer pra pagar as contas, comprar comida, achar emprego. Até o fim do mundo é luxo.

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