16 janvier 2021

Confinamento

Ao olhar à minha volta, para todas as coisas estagnadas, como se tivessem sido feitas para estarem alí, naquele instante, me dei conta que o meu quarto continha toda a minha vida. Primeiro, as estantes : a maioria dos livros estava empilhada nas prateleiras do corredor. Mas as estantes do quarto guardavam cuidadosamente os meus livros preferidos. Eram os únicos que eu desempoeirava, um à um. Se sucediam numa ordem especial, reconhecível apenas por mim. Cada vez que olhava para um deles, a possibilidade que continha me era de grande reconforto.

O desflorecer do outono misturado à situação excepcional que vivíamos parecia ocupar todo o espaço exterior. O silêncio, a ausência de movimento. Eu abria a janela de maneira escancarada, para que o quarto pudesse trocar uma substância invisível com o lado de fora. Para que um e outro espaço se fundissem, ainda que por um curto momento. O tempo, como as coisas do meu quarto, parecia estagnado, e feito para se ausentar alí.  

Algumas vezes me tomava uma incerteza aguda. Isso podia durar mais de um ano. Mais de dois. Me imaginava seis anos depois... “No começo pensamos que em dois ou três meses tudo estaria resolvido. Na virada do ano, como em toda virada de ano, veio a esperança, que foi maior que nos outros anos. Parecia que tudo ia, finalmente, voltar ao lugar, e foi como se chacoalhássemos a cabeça para apagar um pensamento ruim. Apenas mais um ou dois meses... Somente no fim do quinto ano é que pensei “talvez isso dure para sempre”...”.

Mas a minha preocupação era outra; a verdadeira questão que me afligia era saber se algum dia eu ia conseguir sair do meu quarto. Porque tudo estava exatamente alí. A foto do último carnaval : a alegria do calor e a purpurina. A satisfação de uma cama confortável, nem muito dura, nem muito mole. Três ou quatro cobertores grossos. Uma luminária de cabeceira, para tornar a página o único lugar existente antes do sono. Uma luminária grande, com uma lâmpada forte e quente, para enganar o corpo. O poster de um show do David Bowie. Uma garrafa de água, uma chaleira, uma grande xícara.      

Andava lendo um livro sobre Emily Dickinson. Ela também não saia do quarto. Ou, num dado momento da vida, ela passou a não sair mais do próprio quarto. Não sou que nem ela. A visão que tenho da minha janela não é a mesma que a dela. Eu vejo uma senhora que assiste televisão o dia todo, no prédio vizinho. Até no escuro. Um ou outro entregador. Mais atrás, um homem que fuma na sacada, um gato, outro que trabalha, um velho pinheiro de natal encoberto por um plástico. Emily Dickinson via coisas invisíveis, e ainda que eu pudesse olhar pela sua janela, ainda assim não ocuparia o espaço feito ela.

Mas sinto, também, algo urgente. Algumas vezes se transforma em quase angústia; noutras, na maioria, é sublimidade. Uma mistura de espanto e contemplação. Só não consigo descrevê-la, não importa a quantidade de palavras que use, nem em que ordem as coloque. Me parece que a questão de sair do quarto está ligada à esse sentimento. Porque ainda que não veja o invisível da minha janela, vejo muito mais, e também quando fecho os olhos, ou observo um pedaço da parede, o descascar da tinta do teto, os pés da mesa (porque dois dos objetos mais importantes do meu quarto são a pequena mesa de madeira, e a cadeira, colados à cama). Nos últimos meses, fui tomada pela impressão de poder ver mais daqui, do meu quarto, que contém toda a vida.     


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