Ao olhar à minha volta,
para todas as coisas estagnadas, como se tivessem sido feitas para estarem alí,
naquele instante, me dei conta que o meu quarto continha toda a minha vida. Primeiro,
as estantes : a maioria dos livros estava empilhada nas prateleiras do
corredor. Mas as estantes do quarto guardavam cuidadosamente os meus livros
preferidos. Eram os únicos que eu desempoeirava, um à um. Se sucediam numa ordem
especial, reconhecível apenas por mim. Cada vez que olhava para um deles, a
possibilidade que continha me era de grande reconforto.
O desflorecer do
outono misturado à situação excepcional que vivíamos parecia ocupar todo o
espaço exterior. O silêncio, a ausência de movimento. Eu abria a janela de maneira
escancarada, para que o quarto pudesse trocar uma substância invisível com o lado
de fora. Para que um e outro espaço se fundissem, ainda que por um curto
momento. O tempo, como as coisas do meu quarto, parecia estagnado, e feito para
se ausentar alí.
Algumas vezes me
tomava uma incerteza aguda. Isso podia durar mais de um ano. Mais de dois. Me
imaginava seis anos depois... “No começo pensamos que em dois ou três meses
tudo estaria resolvido. Na virada do ano, como em toda virada de ano, veio a
esperança, que foi maior que nos outros anos. Parecia que tudo ia, finalmente,
voltar ao lugar, e foi como se chacoalhássemos a cabeça para apagar um
pensamento ruim. Apenas mais um ou dois meses... Somente no fim do quinto ano é
que pensei “talvez isso dure para sempre”...”.
Mas a minha
preocupação era outra; a verdadeira questão que me afligia era saber se algum
dia eu ia conseguir sair do meu quarto. Porque tudo estava exatamente alí. A
foto do último carnaval : a alegria do calor e a purpurina. A satisfação de uma
cama confortável, nem muito dura, nem muito mole. Três ou quatro cobertores
grossos. Uma luminária de cabeceira, para tornar a página o único lugar
existente antes do sono. Uma luminária grande, com uma lâmpada forte e quente,
para enganar o corpo. O poster de um show do David Bowie. Uma garrafa de água,
uma chaleira, uma grande xícara.
Andava lendo um livro
sobre Emily Dickinson. Ela também não saia do quarto. Ou, num dado momento da
vida, ela passou a não sair mais do próprio quarto. Não sou que nem ela. A
visão que tenho da minha janela não é a mesma que a dela. Eu vejo uma senhora
que assiste televisão o dia todo, no prédio vizinho. Até no escuro. Um ou outro
entregador. Mais atrás, um homem que fuma na sacada, um gato, outro que
trabalha, um velho pinheiro de natal encoberto por um plástico. Emily Dickinson
via coisas invisíveis, e ainda que eu pudesse olhar pela sua janela, ainda assim
não ocuparia o espaço feito ela.
Mas sinto, também,
algo urgente. Algumas vezes se transforma em quase angústia; noutras, na maioria,
é sublimidade. Uma mistura de espanto e contemplação. Só não consigo descrevê-la,
não importa a quantidade de palavras que use, nem em que ordem as coloque. Me
parece que a questão de sair do quarto está ligada à esse sentimento. Porque
ainda que não veja o invisível da minha janela, vejo muito mais, e também
quando fecho os olhos, ou observo um pedaço da parede, o descascar da tinta do
teto, os pés da mesa (porque dois dos objetos mais importantes do meu quarto são
a pequena mesa de madeira, e a cadeira, colados à cama). Nos últimos meses, fui
tomada pela impressão de poder ver mais daqui, do meu quarto, que contém toda a
vida.
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire