19 février 2021

Umbral

O gigante confeiteiro observa as montanhas cobertas de açucar. O bolo está quase acabado. Ele tem um lago no meio, feito de gelatina azul, pequenos biscoitos amanteigados quase em movimento, quase andando de um lado pro outro, montes de pão de ló, arbustos de papel crepom, rodovias de creme de baunilha, uma floresta com troncos de chocolate. O gigante confeiteiro trabalha meticulosamente; talvez sinta certo amor pela sua obra. Detalhes tão pequenos, quase insignificantes, constroem a realidade, fazem dela algo surpreendente. Mais tarde, ao fechar o maravilhoso bolo numa redoma de vidro, o gigante pintará as paredes de branco de onde cairão, esparsos, fios de açucar, ou algodão doce. Durante a noite, as texturas, a acidez, a doçura, o amargor, os aromas se imprimirão nas formas, acentuando a natureza dos ingredientes, criando novas possibilidades gustativas. Antes do dia clarear o bolo, dentro da redoma de vidro, se tornará extremamente saboroso, sutil. Depois que os primeiros raios de sol tenham iluminado os minúsculos cristais de açucar, e que os grandes olhos tenham contemplado a sinceridade dos elementos, delicadamente o gigante o transportará até a sala principal.

O gigante deixa o bolo sozinho, apenas por algumas horas, enquanto fecha os olhos e deita o corpo no cômodo ao lado, cansado do trabalho. Eis que surge o seu irmão. Ao espiar pela fresta da porta, e bater os olhos no bolo, ele é tomado por um sentimento de repugnância. Seu irmão confeiteiro tinha criado um novo mundo. Mais uma vez, um de seus artefatos permaneceria no meio da sala, intocável, etéreo, tomando vida. Sorrateiramente, ele aproxima a lâmpada do bolo. Ao sair, o corpo desajeitado do irmão do gigante cria uma pequena ventania, que bate a porta do cômodo onde o gigante adormeceu. Ele acorda num sobresalto, e sente o cheiro do irmão. O gigante confeiteiro já sabe o que aconteceu.   

Enraivecido, ele escancara a porta, entra num estrondo. Os elementos já começaram a derreter sob a luz intensa da lâmpada. Ele abre um pequeno pote, e recupera o conteúdo, jogando o recipiente contra a parede. Com a grande palma cheia de açafrão, e gestos frenéticos, o gigante espalha o pó sob todas as coisas. As cores se misturam, o vermelho torna-se marrom, o verde dos arbutos torna-se marrom, as montanhas se corroem, tornando-se montes de terra, soterrando lentamente todos os outros comestíveis.

Ao vislumbrar mais de perto a desagregação acontecendo num movimento inexorável, o gigante confeiteiro tenta um gesto. Metade do bolo ainda permanece intacto, mas para ele a situação já se apresenta como um desastre. Antes que tudo se transforme num amálgama monocromo e disforme, ele enfia as mãos na matéria das coisas, esmagando-as com os dedos compridos e imponentes. Os seus dedos tem a força de cordas de aço. Ele sente os ingredientes se desfazerem pela força do próprio corpo, mas a maciez e o odor agradáveis do artefato inacabado contradizem o ato violento.

Uma extinção precipitada. E no entanto, o gigante confeiteiro está certo de que ali, por um curto espaço de tempo, deteve a combinação perfeita da existência.


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