O que eu tomei por uma espécie de afinidade, ou tendência pessoal à escrita foi, na verdade, um mal-entendido. Não se tratava da escrita, mas de uma afinidade, ou tendência pessoal à solidão. Gostar de sentar sozinha num café. Assistir um filme sozinha. Trabalhar sozinha, com a impressão de escutar os próprios pensamentos e sensações, e experiências do mundo. Isso não faz de alguém um escritor. Mas como muitos escritores são solitários, como o trabalho da escrita é solitário, e como parecem também ter enorme prazer em indagar o mundo, descrever a experiência da existência, questionar a realidade, surgiu em mim esse mal-entendido. Perdurou por muito tempo essa idéia que um dia, quando as condições estivessem reunidas, sairia de mim para o papel uma história. Esperei as condições se reunirem. Imaginava que num dado momento alcançaria a espécie de transe às vezes descrita pelos escritores, onde personagens passam a ter vida própria, e escolhem o seu próprio destino. Onde as palavras desaguam no papel, quase sem reflexão, sem a intenção do próprio autor.
Como as condições pareciam não querer se reunir, comecei a pensar sobre elas : talvez fosse o computador... “ se ao menos tivesse um computador, onde pudesse digitar as idéias ao invés de escrevê-las, elas sairiam de mim”. Depois me veio à cabeça a condição “será possível escrever uma boa história no café do Mc Donald’s? E se o lugar onde escrevemos tivesse algum papel na inspiração? E depois, o tempo, o estilo, o desconhecimento da cultura literária, a língua, o tempo, a inspiração... o tempo. Certamente, a escrita precisa de algumas condições reunidas, o amor das palavras, a vontade de procurar a frase que se encaixa melhor, com mais sonoridade, com mais significação. O prazer de contar uma história, entreter um ouvinte. Mas escrever implica sobretudo o tempo de escrever. Trabalhar a página, como um artesão trabalha a pedra, ou a madeira, ou a massa, ou a tinta. Artesão, porque artistas são poucos. A mim, me bastava ser artesã. Queria ter prazer em escrever, e ao mesmo tempo alívio. Para me desvencilhar de algo do qual tinha o dever de me desfazer. O tempo da escrita é também o tempo que não se usa para outros afazeres, como ler um bom livro. Tomei esse tempo. Comprei um computador. Sentei na frente da folha branca, num silêncio agradável. Rodeada por árvores e passarinhos, mas nem assim.
Então veio o tempo da revelação. Faltava alguma condição, que eu desconfiava ser imaterial, para que a escrita acontecesse. Saíam, ali, frases e parágrafos, alguns embuídos de promessa, outros banais, como se tivessem sido escritos às pressas. Em princípio, tive a sensação de que no fundo, não tinha nada pra contar. O que seria tão importante a ponto de tomar o tempo da leitura de um bom livro? Ademais, tinha arrepios ao ler um texto mais ou menos real, mais ou menos ficção. Me desagradava entrever o autor nas peripécias do que ele fingia ser um personagem. Ali acabava para mim o pacto tácito que implicava a ficção. Se não tinha nada para contar, e se não me agradava escrever sobre aquilo que eu vivia, não era de surpreender que a escrita não acontecesse para mim.
No fundo, essa história de não ter o que contar era mais uma das desculpas sobre a reunião das condições da escrita. Quantos escritores já não tinham criado textos maravilhosos sobre as coisas mais banais? Sem a facilidade de discorrer sobre as picuinhas da vida pessoal, nem a glória de inventar uma rede de personagens interligados, ou mundos paralelos acompanhados de sistemas linguísticos próprios, escritores – talvez os melhores, ou os meus preferidos – partiam da banalidade. Pequenos fatos, objetos, relações sem importância. E ali, bem em frente aos nossos olhos, apenas pela junção de palavras bem escolhidas, algo especial acontecia. Um tombo da cadeira, um coelho num apartamento, um bigode, um nariz, um farol, uma galinha, um relógio... uma banalidade ou uma incongruência se transformavam num prazer literário.
Então, num dado momento, depois de anos de reflexão, frustrações, pequenas esperanças e grandes decepções, algum trabalho e muita perda de tempo, foi que eu reconheci : me faltava talento.
Isso parece simples, uma das condições certamente necessárias para se tornar uma escritora. Muitas pessoas sabem escrever. Utilizar as palavras na boa ordem, colocar as letras certas nos lugares certos. Pontuar, paragrafar, reler, tornar mais claro, cortar excessos, usar sinônimos e pronomes para evitar a repetição. Mas escrever do jeito que eu quis, do jeito que eu imaginei que fosse me acontecer, e tudo que isso me traria, o prazer que provocaria em mim a realização... tudo isso não supunha apenas a escrita. Escrevi trabalhos de universidade, bem construídos, exemplificados, com uma questão e elementos de resposta, reagrupados em partes coerentes. Mas a minha vontade da escrita era outra. Maior. Tratava-se apenas de uma vontade.
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