03 août 2021

Tudo o que é possível ver do outro lado da rua

Passei pela porta da Sorbonne, aquela mesma que eu usava todos os dias úteis da semana para ganhar o pátio cinzento, vazio, envolto por arcadas que me pareciam ancestrais. Subia ao primeiro andar pelas escadas, entrava numa das salas de aula, e sentava na carteira desconfortável de madeira. Desconfortável, pequena, mas extremamente afeita ao que se propunha. Pelo lado de fora posso ver o batente da porta de madeira. Lembro de sentar no corredor, esperando pela próxima aula. Estudava aqueles autores, monumentais, por vezes obscuros, sempre instigantes. A biblioteca era escura, grandiosa, iluminada apenas pelas tão características luminárias verdes, independentes. Cada uma numa mesa. De dia como de noite, a luz era sempre a mesma. E aquilo combinava de maneira explícita com o que fazíamos ali. Combinava com o frio, os dias cinzentos que definiam quase todo o ano universitário. De dia como de noite, silenciosos, ávidos, consultávamos palavras.

Pedir um livro para consulta era um verdadeiro compromisso. Isso mobilizava não sei quantas pessoas, o livro demorava mais de meia hora pra emergir até a superfície. Porque facilmente se tinha a impressão de porões e corredores subterrâneos cheios da inteligência do mundo, desde a idade média. Um pouco como O nome da Rosa. Mas talvez naquela época, ainda nova, eu confundisse as coisas : o pêndulo de Foucault se movimentava incessantemente não muito longe dali. Um dia, coisa extraordinária, encontrei o meu professor de Filosofia do colegial dentro da biblioteca. Ele me perguntou “o que faz aqui?”, e eu “estudo Filosofia!”. Mesmo no escuro.

Passando por essa rua estreita, me lembrei que comprava um bom café pra levar, por apenas um euro. Apenas uma vez por dia. Senão tomava o café ruim das máquinas automáticas. Um caldo escuro mas quente, num copo de plástico, com um palito de plástico para mexer alguma coisa que vivia ali dentro. Como disse, da rua eu podia ver o batente da porta que eu atravessava algumas vezes ao dia. Tentei lembrar o que, naquela época (dez anos atrás?), eu tinha em mente, além dos sistemas de pensamento dos outros. A vida ainda era indefinida apesar da idade avançada para que ela fosse a tal ponto indefinida. Se naquela época tivesse podido me ver agora, sentada no café da praça dez anos depois, ficaria contente em me ver. Porque já naquela época não esperava nada de extraordinário. E já gostava de entrar numa livraria, comprar um livro e sentar num café (na época só comprava livros de etiqueta amarela, na livraria do outro lado da avenida).

Eu, olhando através da janela, acho graça naquela que fui. Sinto nostalgia dessa moça que tinha a impressão de aprender todas as coisas do mundo. E eram tantas, as coisas, tão diferentes. E não serviam para nada na vida, além do simples prazer de poderem ser estudadas.

Talvez a cada vez que ollhar para trás, verei alguém cuja vida me parecerá indefinida. Isso não é totalmente verdade. Porque no presente, o cotidiano, os afazeres fazem com que tudo pareça extremamente determinado. Uma imobilidade. Lembrei que sentava do outro lado da avenida, num lugar cuja sala cheirava eternamente à manteiga de croissant, onde escrevi fichas e fichas. Às vezes, no fim do dia, pegava essa pequena rua quase inexistente, entre o prédio da universidade e a avenida. Sempre tinha algo interessante em cartaz, numa dessas salas antigas e mal sonorizadas. As cadeiras de madeira, a tapeçaria nas paredes, o temor de esfregar-se nas pulgas. Eram filmes velhos, como o pátio da universidade, como as estátuas que nos olhavam - elas continuam ali, a me olhar no presente instante – acusadoras : o que estão fazendo, perdendo tempo com futilidades? Como se devessemos voltar à obscuridade da biblioteca, e observar a luz emanando das páginas brancas. É isso que me dizem até hoje, com seus dedos acusadores. Duas delas estão separadas por um relógio. Ele também me acusa, e todos na praça bebendo seus cafés e seus chopes : o que pensam que estão fazendo, perdendo-se em futilidades?           

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