24 novembre 2021

Exame de rotina

A moça observava a cor desbotada do solo, tentando imaginar o dia em que, há décadas atrás, o consultório tinha sido inaugurado. As paredes salmão contrastando com os corrimãos mais escuros, os quadros com formas geométricas, os donos da clínica vestidos com paletos cinza dois números maiores do que os seus corpos, as secretárias com saias de couro, blusas com ombreira e permanentes. Finalmente ouviu o barulho da maçaneta. Com passos lentos, uma senhora saiu da sala, e foi se aproximando da moça pelo corredor. A enfermeira disse alguma coisa num tom agudo, condescendente, mas talvez porque o movimento lhe fosse penoso, ou porque não gostasse que se dirigissem à ela daquela maneira infantil, a senhora continuou caminhando, dando as costas à enfermeira. A porta se fechou sem explicações. À moça, a senhora não lembrou ninguém em particular, não tinha avós. Tentou estimar a sua idade, pensou no número 82 sem certeza. Vía-se que tinha dificuldade para caminhar, e que aquilo não se devia a uma doença em particular, mas à própria maneira como tinha que lidar com a realidade. Ao passar pela moça disse bom dia com uma voz grave e rouca, e suspendeu o movimento por alguns instantes, porque sua atenção mantinha o seu corpo em equilíbrio. A moça respondeu um bom dia tímido, e teve a sensação de ver passar à sua frente, suspendida no ar, uma equilibrista. Cheirava bem. Usava jóias e batom. Tinha as unhas pintadas. Talvez tivesse até ido ao cabelereiro.

A moça pensou que nunca conhecera uma senhora distinta. Imaginou-a sua avó : aos dez anos, num dos jantares de Natal feito para os adultos, onde candelabros iluminavam a sala, inúmeros pratos e talheres, e outros utensílios enchiam a mesa, ela teria lhe estendido uma pequena caixa de porcelana pintada à mão delicadamente. Ao abrir a caixa a moça teria ficado deslumbrada, até nervosa com o conteúdo. Envolto em seda, um camafeu. A avó não diria muito (senhoras distintas não perdiam tempo com pequenos sentimentos e palavras desnecessárias), apenas que o colar teria pertencido à sua bisavó, cujo busto se destacava em branco no pingente. Vindo de alguma parte distante do Leste Europeu. Aquelas festas de Natal lhe dariam vontade de se tornar adulta, porque na casa da avó as crianças comiam na cozinha.

Mas a moça mal tinha conhecido os avós. Sabia que vinham de outro lugar. Tentou imaginá-los em terra natal, mas o exercício lhe exigia a evoação de detalhes que não era capaz de criar. De resto, sabia que tinham sido senhores mais ou menos pobres, mais ou menos felizes. 

O corredor da clínica era mal decorado, mas a senhora fingia não perceber. Deu uns passos ao sair da porta número um, e passou em frente à moça. Ia cheia de alguma coisa (um perfume caro? O orgulho?) que a distinguia, mas não apenas ela. O corredor, a clínica, até a decoração e a moça que lhe observava se distinguiam com a presença da senhora. A moça sentiu-se orgulhosa de frequentar o mesmo médico que ela.

- Madame?

A enfermeira se dirigiu à moça, sorridente.

- Porta número quatro.

Até aquele momento não tinha se perguntado porque as portas tinham números. Levantou-se às pressas, como se tivesse perdido muito tempo, desajeitada. A senhora já segurava no corrimão, começando a perigosa tarefa de descer as escadas. Não iam retas, formavam uma espiral. A moça ainda pode observar a maneira como descia as escadas, temerosa, mas embuída de uma resignação que só as pessoas mais velhas podiam arborar sem que o sentimento se aparentasse a uma espécie de conformismo. De certo, a velha sabia porque as portas tinham números. Nada mais lhe surpreendia, conhecia todas as coisas do mundo. Quando chegaria esse momento? Os anos passavam cada vez mais depressa, e o único sentimento que lhe cabia era o estupor. Eventos sobrevinham (uma separação depois de três anos de casada, a morte da mãe), já não se sentia mais tão moça. Gostaria de começar a usar perfume caro, se maquiar e usar jóias.

- Madame?

Suas roupas continuavam tendo todas as cores, peças de algodão fáceis de vestir e lavar. Nunca tinha levado uma só peça ao tintureiro.

-Depois deve esperar a luz verde acender, e poderá entrar.

Não tinha prestado atenção nas instruções, se encontrava numa pequena antesala de duas portas. À vista do cabide intuiu que deveria tirar a roupa. Resolveu guardar as calças. Certamente, por debaixo do tailleur verde escuro, a senhora levava uma camisa de seda, mas já não poderia dizer se aquilo denotava distinção ou velhice.

De súbito, uma mulher vestida de branco abriu a porta da antesala. A moça, pega em pensamentos, olhou-a sem graça, esperando por um gesto compreensivo. Em vão. A senhora certamente estivera à altura da situação. Pelada da cintura para cima, a moça entrou na sala onde uma grande máquina ocupava mais da metade do espaço, emitindo um zunido imperceptível. Se lembrou da apreensão que deveria lhe causar o raio-x; “sem colar, sem brincos, ou qualquer objeto de metal”, tinham lhe dito na recepção.

- É um controle?

- Foi a minha ginecologista que pediu para...

- É a primeira vez?

- Sim.

- Quantos anos? Quarenta? Então é um controle.

A moça pensou na senhora. Certamente a pergunta não tinha lhe sido feita. Não nesses termos. Numa idade avançada qualquer ação parecia fazer parte de um controle. Um longo exame contínuo, para ganhar um ou dois anos a mais.

A mulher de uniforme branco fez um gesto para que se aproximasse da máquina. Sucintamente explicou que colocaria um de seus seios na plataforma, e que a parte de cima da máquina o apertaria ligeiramente.

- Como uma sanduicheira – disse a moça, por apreensão.

A mulher já tinha um de seus seios na mão, e encontrava certa dificuldade para colocá-lo na plataforma.

- São muito pequenos. Encoste mais na máquina.

A senhora também não devia ter vivido tal constrangimento, porque os seus seios pareciam enormes, quase disformes por baixo do tailleur. Deviam ter se esparrado na plataforma, ao contrário do pequeno seio da moça, que quase nem tocava a superfície gelada.

- Mais pra frente. Não se mexa mais!

A mulher encostou num botão da própria máquina com a mão direita, enquanto apertava o seio da moça de maneira dolorosa contra a plataforma, com a mão esquerda. A parte de cima começou a descer lentamente, de maneira trabalhosa. Aquilo lhe fez pensar “a senhora tinha conseguido descer todos os degraus?”. Se já tivesse passado pela porta do consultório, talvez sentisse muito que a realidade não fosse um grande consultório onde cruzava com poucas pessoas, e onde os corredores sempre tinham corrimãos. Onde o vento não insistia em levantar mechas de seus cabelos, apesar do laquê. Ou talvez a senhora ainda estivesse passando pela dura prova dos degraus em espiral.

- Não se mexa – disse mais uma vez a mulher.

A máquina desceu mais um pouco, e achatou-lhe o seio de tal maneira, que a moça pensou que se fosse uma bexiga, ela já teria explodido.

Alguma coisa na moça parecia irritar a mulher de uniforme. Podia ser apenas o tamanho dos seus seios, que lhe dificultavam a tarefa. Ou pensava em outra coisa, um problema na familia, uma azia. Passava o dia naquela sala, com uma máquina que zumbia, achantando os seios das mulheres. A moça esperou que ela tivesse sido menos rude com a senhora. Mas a verdade é que à senhora já não lhe tocavam mais as delicadezas ou rugosidades alheias. Provavelmente nem bem sentira a pressão, que mais um pouco teria sido insuportável à moça. A moça se conteve com muito custo, não se atreveu a nenhum comentário ou reclamação, quis seguir o exemplo da senhora, precisava endurecer, ser menos sentimental. As lágrimas lhe encheram os olhos, mas ela conseguiu retê-las, antes que escapassem das pálpebras. Assim seguiria dali para frente. Já tinha passado por um contrôle, conhecia as particularidades de uma mamografia. Seus peitos, de certo pequenos, aumentariam de volume com a idade. Sairia do consultório um pouco mais próxima da senhora, mais alheia às vicissitudes da realidade, ainda que não completamente desfeita de suas sutilidades.    

 

 

 

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