A moça observava a cor desbotada do solo, tentando imaginar o dia em que, há décadas atrás, o consultório tinha sido inaugurado. As paredes salmão contrastando com os corrimãos mais escuros, os quadros com formas geométricas, os donos da clínica vestidos com paletos cinza dois números maiores do que os seus corpos, as secretárias com saias de couro, blusas com ombreira e permanentes. Finalmente ouviu o barulho da maçaneta. Com passos lentos, uma senhora saiu da sala, e foi se aproximando da moça pelo corredor. A enfermeira disse alguma coisa num tom agudo, condescendente, mas talvez porque o movimento lhe fosse penoso, ou porque não gostasse que se dirigissem à ela daquela maneira infantil, a senhora continuou caminhando, dando as costas à enfermeira. A porta se fechou sem explicações. À moça, a senhora não lembrou ninguém em particular, não tinha avós. Tentou estimar a sua idade, pensou no número 82 sem certeza. Vía-se que tinha dificuldade para caminhar, e que aquilo não se devia a uma doença em particular, mas à própria maneira como tinha que lidar com a realidade. Ao passar pela moça disse bom dia com uma voz grave e rouca, e suspendeu o movimento por alguns instantes, porque sua atenção mantinha o seu corpo em equilíbrio. A moça respondeu um bom dia tímido, e teve a sensação de ver passar à sua frente, suspendida no ar, uma equilibrista. Cheirava bem. Usava jóias e batom. Tinha as unhas pintadas. Talvez tivesse até ido ao cabelereiro.
A moça pensou que nunca
conhecera uma senhora distinta. Imaginou-a sua avó : aos dez anos, num dos
jantares de Natal feito para os adultos, onde candelabros iluminavam a sala,
inúmeros pratos e talheres, e outros utensílios enchiam a mesa, ela teria lhe
estendido uma pequena caixa de porcelana pintada à mão delicadamente. Ao abrir
a caixa a moça teria ficado deslumbrada, até nervosa com o conteúdo. Envolto em
seda, um camafeu. A avó não diria muito (senhoras distintas não perdiam tempo
com pequenos sentimentos e palavras desnecessárias), apenas que o colar teria
pertencido à sua bisavó, cujo busto se destacava em branco no pingente. Vindo
de alguma parte distante do Leste Europeu. Aquelas festas de Natal lhe dariam
vontade de se tornar adulta, porque na casa da avó as crianças comiam na
cozinha.
Mas a moça mal tinha
conhecido os avós. Sabia que vinham de outro lugar. Tentou imaginá-los em terra
natal, mas o exercício lhe exigia a evoação de detalhes que não era capaz de
criar. De resto, sabia que tinham sido senhores mais ou menos pobres, mais ou
menos felizes.
O corredor da clínica era
mal decorado, mas a senhora fingia não perceber. Deu uns passos ao sair da
porta número um, e passou em frente à moça. Ia cheia de alguma coisa (um
perfume caro? O orgulho?) que a distinguia, mas não apenas ela. O corredor, a
clínica, até a decoração e a moça que lhe observava se distinguiam com a
presença da senhora. A moça sentiu-se orgulhosa de frequentar o mesmo médico
que ela.
- Madame?
A enfermeira se dirigiu à
moça, sorridente.
- Porta número quatro.
Até aquele momento não
tinha se perguntado porque as portas tinham números. Levantou-se às pressas,
como se tivesse perdido muito tempo, desajeitada. A senhora já segurava no
corrimão, começando a perigosa tarefa de descer as escadas. Não iam retas,
formavam uma espiral. A moça ainda pode observar a maneira como descia as
escadas, temerosa, mas embuída de uma resignação que só as pessoas mais velhas
podiam arborar sem que o sentimento se aparentasse a uma espécie de
conformismo. De certo, a velha sabia porque as portas tinham números. Nada mais
lhe surpreendia, conhecia todas as coisas do mundo. Quando chegaria esse
momento? Os anos passavam cada vez mais depressa, e o único sentimento que lhe
cabia era o estupor. Eventos sobrevinham (uma separação depois de três anos de
casada, a morte da mãe), já não se sentia mais tão moça. Gostaria de começar a
usar perfume caro, se maquiar e usar jóias.
- Madame?
Suas roupas continuavam
tendo todas as cores, peças de algodão fáceis de vestir e lavar. Nunca tinha
levado uma só peça ao tintureiro.
-Depois deve esperar a luz
verde acender, e poderá entrar.
Não tinha prestado atenção
nas instruções, se encontrava numa pequena antesala de duas portas. À vista do
cabide intuiu que deveria tirar a roupa. Resolveu guardar as calças.
Certamente, por debaixo do tailleur verde escuro, a senhora levava uma camisa
de seda, mas já não poderia dizer se aquilo denotava distinção ou velhice.
De súbito, uma mulher
vestida de branco abriu a porta da antesala. A moça, pega em pensamentos,
olhou-a sem graça, esperando por um gesto compreensivo. Em vão. A senhora
certamente estivera à altura da situação. Pelada da cintura para cima, a moça
entrou na sala onde uma grande máquina ocupava mais da metade do espaço,
emitindo um zunido imperceptível. Se lembrou da apreensão que deveria lhe
causar o raio-x; “sem colar, sem brincos, ou qualquer objeto de metal”, tinham
lhe dito na recepção.
- É um controle?
- Foi a minha ginecologista
que pediu para...
- É a primeira vez?
- Sim.
- Quantos anos? Quarenta?
Então é um controle.
A moça pensou na senhora.
Certamente a pergunta não tinha lhe sido feita. Não nesses termos. Numa idade
avançada qualquer ação parecia fazer parte de um controle. Um longo exame
contínuo, para ganhar um ou dois anos a mais.
A mulher de
uniforme branco fez um gesto para que se aproximasse da máquina. Sucintamente
explicou que colocaria um de seus seios na plataforma, e que a parte de cima da
máquina o apertaria ligeiramente.
- Como uma
sanduicheira – disse a moça, por apreensão.
A mulher já
tinha um de seus seios na mão, e encontrava certa dificuldade para colocá-lo na
plataforma.
- São muito
pequenos. Encoste mais na máquina.
A senhora também
não devia ter vivido tal constrangimento, porque os seus seios pareciam
enormes, quase disformes por baixo do tailleur. Deviam ter se esparrado na
plataforma, ao contrário do pequeno seio da moça, que quase nem tocava a
superfície gelada.
- Mais pra
frente. Não se mexa mais!
A mulher encostou
num botão da própria máquina com a mão direita, enquanto apertava o seio da moça
de maneira dolorosa contra a plataforma, com a mão esquerda. A parte de cima
começou a descer lentamente, de maneira trabalhosa. Aquilo lhe fez pensar “a
senhora tinha conseguido descer todos os degraus?”. Se já tivesse passado pela
porta do consultório, talvez sentisse muito que a realidade não fosse um grande
consultório onde cruzava com poucas pessoas, e onde os corredores sempre tinham
corrimãos. Onde o vento não insistia em levantar mechas de seus cabelos, apesar
do laquê. Ou talvez a senhora ainda estivesse passando pela dura prova dos
degraus em espiral.
- Não se mexa –
disse mais uma vez a mulher.
A máquina desceu
mais um pouco, e achatou-lhe o seio de tal maneira, que a moça pensou que se
fosse uma bexiga, ela já teria explodido.
Alguma coisa na
moça parecia irritar a mulher de uniforme. Podia ser apenas o tamanho dos seus seios,
que lhe dificultavam a tarefa. Ou pensava em outra coisa, um problema na
familia, uma azia. Passava o dia naquela sala, com uma máquina que zumbia,
achantando os seios das mulheres. A moça esperou que ela tivesse sido menos
rude com a senhora. Mas a verdade é que à senhora já não lhe tocavam mais as
delicadezas ou rugosidades alheias. Provavelmente nem bem sentira a pressão,
que mais um pouco teria sido insuportável à moça. A moça se conteve com muito
custo, não se atreveu a nenhum comentário ou reclamação, quis seguir o exemplo
da senhora, precisava endurecer, ser menos sentimental. As lágrimas lhe
encheram os olhos, mas ela conseguiu retê-las, antes que escapassem das
pálpebras. Assim seguiria dali para frente. Já tinha passado por um contrôle,
conhecia as particularidades de uma mamografia. Seus peitos, de certo pequenos, aumentariam
de volume com a idade. Sairia do consultório um pouco mais próxima da senhora,
mais alheia às vicissitudes da realidade, ainda que não completamente desfeita
de suas sutilidades.
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