20 juin 2022

Com amor, de toda a família

- Esse não é o bolo que eu encomendei.

A moça deu a volta no balcão, com um caderno sujo de farinha. As duas olhavam para dentro da caixa feita num papelão pistache, a tampa e o laço encostados de lado. Não fosse pelo cheiro de amêndoa e baunilha, poderiam estar admirando um par de sapatos numa loja de grife.   

- Aqui está marcado “floresta negra, sem cereja, 16h00”.

Olhou o relógio e aproximou a caixa para ter certeza da ausência das cerejas. Não demonstrava impaciência, mas uma fila ia se formando, e duas outras atendentes iam de um lado pro outro, sem resultado aparente.

- Essa mensagem não é para mim. Enfim, eu não ditei isso aí.

A moça pegou o telefone. “Ela diz que tem um problema com o bolo. Não, a mensagem. Sim.”.

-Qual era a sua mensagem?

- “Com amor”.

A moça explicou que aquele era o último bolo, o confeiteiro já tinha ido embora.

- Houve uma troca. Eles não devem ter prestado atenção.

Com a caixa no banco do passageiro, a mulher colocou a chave na ignição, mas não deu a partida. Talvez fosse possível cobrir o final da mensagem, mas lembrou que o supermercado já tinha fechado. Não podia cortar um pedaço do bolo. Pensou em apresentá-lo daquele jeito. Imaginou o marido tomando o último gole de vinho, dizendo que não queria comemorar com os colegas, e ao pegar a faca, toparia com a mensagem. Talvez não fizesse nenhum comentário. O mais provável é que lhe cobrasse, “que idéia é essa?”, e discutiriam mais uma vez sobre os filhos. Não era o que a mulher tinha planejado. Tinha dito para ele não chegar tarde. Queria marcar o momento, fazê-lo sentir-se confortável, alegre com o que aconteceria dali pra frente. Pensou nos filhos. Ligou o carro, e as lágrimas lhe embaçaram a vista. Foi tomada por soluços e por imagens : a primeira casa em que tinham morado, o Natal de cinco anos atrás, o laço do bolo, uma luminária em forma de elefante... Não sabia definir o momento em que aquela frase tinha passado a não fazer mais sentido para eles. Outras tantas frases poderiam ter perdido o sentido. Imaginou o seu bolo no centro de uma mesa grande, o barulho vindo da cozinha, do quintal, do salão de pessoas desconhecidas. Comiam com gosto. Em menos de um mês o marido pararia de trabalhar, e então, seriam só os dois. Pensou em ligar para os filhos, e lembrou que era o meio da noite em Seattle. Ou seria Portland? Ainda que um dos dois atendesse, nenhuma palavra parecia adequada o suficiente. Saiu do carro, abriu a porta do passageiro, e como se desistisse de dar carona a um desconhecido, tirou o bolo do banco. Encostou a caixa na porta da confeitaria e desejou que alguém, quelquer pessoa, aproveitasse do chocolate, da mensagem, da ausência das cerejas.

 

 

 

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