31 août 2022

Ponto cardinal

A estrada parecia não ter destino, mas continuávamos seguindo há alguns metros de distância, um do outro. O carro preto de modelo simples devia estar rodando na mesma velocidade que eu, pois sua traseira mantinha um tamanho constante. Apenas um ligeiro movimento para os lados, e as faixas brancas se sucedendo rapidamente no retrovisor e no espelho do passageiro quebravam a monotonia da viagem. Pela forma geométrica do vidro de trás era possível perceber um vulto tombado à direita. Uma pessoa de grande porte, mergulhada num sono profundo. Do lado de fora árvores, cercas, postes e a barreira de segurança também tinham se transformado em vultos, os últimos detalhes iam se apagando à medida em que a estrada ia ficando pra trás. Mais ao longe, grandes montes contrastávam com o céu, ambos escuros. Nessa hora apenas uma imagem aparecia colorida, além do farol do freio: no retrovisor do carro preto uma mulher de cabelos descoloridos, cacheados, e lábios escarlates. E nas lentes de seus óculos espelhados, um céu explosivo. Nuvens em rajadas atravessavam em todas as direções, mas a claridade insistia em estar presente. Camadas de rosa se sobrepunham umas às outras, indicando algo extraordinário, que acabara de deixar o espaço das lentes. A cena arrebatou minha atenção. Me impregnei dos tons, e foi como se me levassem para além dos elementos.

Alguns quilómetros adiante o carro preto desviou da faixa contínua e desapareceu numa saída à direita, sem nenhum aviso. Quando dei por mim, dirigia no meio da estrada. Liguei o farol alto, buscando por precisão. Pela realidade que se manifestara nos óculos espelhados. Apenas o feixe amarelo se opunha ao asfalto. A estrada que seguia me pareceu vazia.  


Aucun commentaire: