08 janvier 2023

As sandálias

Mais jovem, me parecia muito distante o dia em que passaria a usar as sandálias da minha mãe. Até hoje de manhã. Estava sentada num dos vagões do trem, à caminho do trabalho, observando distraidamente os poucos passageiros até que uma mulher me chamou a atenção. Era alta, tinha os cabelos cacheados e volumosos, presos por uma grande presilha. Sua calça larga de brim, e a camiseta branca que caía por cima da calça davam uma impressão de amplitude, como se a brisa passasse constantemente pelo seu corpo. Usava um colar de contas grandes e coloridas, que combinava com os seus cabelos. Levava uma pequena bolsa verde musgo. Foi aí que, descendo os meus olhos até os seus pés, dei com as sandálias da minha mãe. Eram feitas de duas tiras cruzadas de couro marrom, deixando o dedão do pé à mostra.

Pareciam confortáveis, como na época, também pareciam confortáveis as sandálias da minha mãe. Era uma de suas desvantagens, senão a maior. Ainda que jovem, eu fosse incapaz de andar de salto (e o salto agulha me pareça ainda hoje um desafio funambulista), a idéia de comprar qualquer artigo vestimentário tendo por argumento o conforto se chocava frontalmente e violentamente com a minha concepção estética de então. Eu não tinha grandes pretensões estilísticas. O que estava em jogo não eram, na realidade, princípios da estética, mas a minha identidade. Aquilo que escolheria usar definia o meu contorno, me diferenciando assim das coisas e pessoas ao meu redor, e da minha mãe em particular.

Notem bem, nunca duvidei do fato que algum dia colocaria tais sandálias nos pés. Esse era o caminho natural das coisas, se substituíndo umas às outras. Apenas não conseguia imaginar o momento em que entraria numa loja de sapatos apontando para as sandálias de tiras cruzadas, dizendo “estas, tamanho 38 por favor”. Mas aí estava a admirar as vestimentas de uma mulher, e sobretudo a sua postura. De certo, não eram suas roupas que faziam dela uma presença imponente, ainda que as escolhas que tinha feito entrando numa loja e dizendo “esta calça”, ou “este colar” compusessem uma personalidade. Daí chegamos nos sapatos. Combinavam perfeitamente com suas vestimentas, assim como com sua atitude. E eu ali, sentada no trem numa manhã estival, cheguei a admirar as tiras grossas e cruzadas da sandália, o fato de deixar apenas uma parte dos dedos à mostra, o aspecto seguro, e finalmente confortável das sandálias.

É sem alarde que um dia nos damos conta que estamos no lugar antes ocupado por outra pessoa.   


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