Ouvia as
palavras pronunciadas num rítimo pausado, respeituoso. Vía-se que o padre não
tinha conhecido o morto pessoalmente. Alguém da familia lhe fornecera elementos.
As palavras não traduziam a imagem que fazia do homem, mas nunca conhecemos
realmente um colega. No dia à dia são apenas algumas generosidades e viéses que
se entrechocam no espaço de um escritório. Havia convidados o suficiente. Tinha
se mudado para a cidade ainda jóvem, gostava de cozinhar, e de voltar ao buraco
de onde tinha saído. Acompanhara a longa internação da mãe (suspiros). Tocava gaita.
Perspicaz, tinha tido um pequeno sucesso financeiro, e asssim deixava o futuro próximo
da viúva garantido (soluços e pessoas assoando o nariz). Ainda ouviu “afável”,
e “lamentavelmente”, mas a voz do padre era entorpecente. Começou a pensar no
momento em que seria ele no caixão. Na imagem que os colegas guardariam dele, e
o que os surpreenderia, se viéssem. Descobrir que ele colecionava livros sobre taxidermia?
Contou as pessoas que conhecia. Se morresse dali uns vinte anos, era possível
que perdesse boa parte dos contatos. Por outro lado, pensando nisso agora,
ainda lhe sobrava tempo suficiente para entreter algumas relações e garantir
metade da audiência. Se começasse o saxofone nos próximos meses poderiam dizer
dele “um músico”, ou se menos, “um homem que apreciou a música”. No final da
cerimônia tentaria abordar o padre. Tinha certo talento para a escrita, poderia
deixar um texto lavrado em cartório? Nenhuma palavra sobre jardinagem, ou viagens
ao estrangeiro. E ainda que fossem esses seus verdadeiros passatempos, quem
poderia dizê-lo?
As pessoas se
levantaram e começaram a se dirigir lentamente para a saída. Ele fez o mesmo, e
ao dar uma última olhada no caixão sentiu-se grato. Se aproximou da família com
um sorriso inadequado no rosto. Afinal, depois de cinquenta e quatro anos,
tinha encontrado um propósito na vida.
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