03 mars 2023

Exéquias

Ouvia as palavras pronunciadas num rítimo pausado, respeituoso. Vía-se que o padre não tinha conhecido o morto pessoalmente. Alguém da familia lhe fornecera elementos. As palavras não traduziam a imagem que fazia do homem, mas nunca conhecemos realmente um colega. No dia à dia são apenas algumas generosidades e viéses que se entrechocam no espaço de um escritório. Havia convidados o suficiente. Tinha se mudado para a cidade ainda jóvem, gostava de cozinhar, e de voltar ao buraco de onde tinha saído. Acompanhara a longa internação da mãe (suspiros). Tocava gaita. Perspicaz, tinha tido um pequeno sucesso financeiro, e asssim deixava o futuro próximo da viúva garantido (soluços e pessoas assoando o nariz). Ainda ouviu “afável”, e “lamentavelmente”, mas a voz do padre era entorpecente. Começou a pensar no momento em que seria ele no caixão. Na imagem que os colegas guardariam dele, e o que os surpreenderia, se viéssem. Descobrir que ele colecionava livros sobre taxidermia? Contou as pessoas que conhecia. Se morresse dali uns vinte anos, era possível que perdesse boa parte dos contatos. Por outro lado, pensando nisso agora, ainda lhe sobrava tempo suficiente para entreter algumas relações e garantir metade da audiência. Se começasse o saxofone nos próximos meses poderiam dizer dele “um músico”, ou se menos, “um homem que apreciou a música”. No final da cerimônia tentaria abordar o padre. Tinha certo talento para a escrita, poderia deixar um texto lavrado em cartório? Nenhuma palavra sobre jardinagem, ou viagens ao estrangeiro. E ainda que fossem esses seus verdadeiros passatempos, quem poderia dizê-lo?

As pessoas se levantaram e começaram a se dirigir lentamente para a saída. Ele fez o mesmo, e ao dar uma última olhada no caixão sentiu-se grato. Se aproximou da família com um sorriso inadequado no rosto. Afinal, depois de cinquenta e quatro anos, tinha encontrado um propósito na vida.   


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