03 avril 2023

Filamento

Estava parado, porque três vezes tinha tido a possibilidade de entrar num vagão, e não o fez. Tentou percebê-lo sem se mexer, mas a pessoa se punha uns centímetros para trás. “Propositalmente”, pensou. Continuou sua atividade, não podia fazer muito, mas se preparou.

Puxava o fio com o dedo indicador. Não era realmente puxar, mas empurrar o fio. Tudo dependia da tensão que conseguía criar entre o novelo, o fio que passava pelas costas e o movimento das agulhas. E claro, o dedo indicador. Parecia tecer uma roupa de criança, mas as cores eram discrepantes, um azul turquesa misturado com laranja. Seria possível que tivesse novelos de outras cores numa das três sacolas? Também a forma era misteriosa, mas isso é comum, toda pessoa que tricota sabe que as mais estranhas formas podem resultar numa bela peça. Em nada lhe encomodava o vai e vem dos passageiros. Quando o metrô demorava um pouco mais, e o corredor ia se enchendo, apenas puxava as sacolas para si. Ou, quando a vista ficava cansada, levantava a cabeça uns instantes para observar os belos cortes e casacos de lã. Iam, frescos, ao trabalho. A fricção dos panos e o barulho dos sapatos ocupavam o espaço. As portas se fechavam com força, no sinal estridente. O azul aos poucos foi ficando mais aparente, mas a forma seguia misteriosa. Às vezes acontecia do seu olhar ir um pouco mais além, e então era como se visse o que já não estava mais em lugar algum.

O que lhe desagradava eram esses corpos que paravam ao seu lado. Eram insistentes, curiosos. Lhe acuavam como se a fechassem numa bolha. Tinha encontrado solução para alguns problemas como o desconforto das cadeiras de plástico, ou o peso de seus pertences. Mas quando atardavam o olhar, seu cabelo se tornava mais emaranhado, seus sapatos mais sujos, percebia o próprio cheiro. Sempre tinha preferido o movimento à inércia.

Acontecia de falarem com ela. Não os ignorava, não suportavam que pessoas na sua situação não lhe dessem ouvidos. Mas não respondia. Apenas exibia um sorriso, sem mostrar os dentes. “Onde estão seus familiares? Não é possível que não tenha ninguém!”. “Se a senhora se esforçar, Deus virá em seu socorro, mas deve ter a fé verdadeira. Ele nos põe à prova”. “Já procurou a Cruz Vermelha?”. “O melhor que tem a fazer é conseguir um emprego, não pode ficar esperando que as coisas aconteçam”. Contentava-se em balançar a cabeça numa afirmação, até que num dado momento, sem contrapartida, acabavam indo embora.

- Desculpe atrapalhar. Pode me dizer o nome do ponto?

Dessa vez, virou a cabeça. A voz soou grave. Era um homem de terno, cabelo ralo, segurava uma maleta preta.

- Desculpe. Gostaria apenas de saber que ponto usa.

- Ponto arroz.

Disse isso alto, porque o homem falava baixo.

- Pode fazer mais devagar? Se encomoda se eu observar?

- Sabe tricotar?

O homem se inclinou, mas não saiu do lugar.   

- Só ponto meia. Foi o meu terapeuta que indicou, para remediar a angústia.

Retomou as agulhas, e se concentrou em fazer grandes e lentos movimentos com o fio e o dedo indicador.


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