05 juin 2024

Lembra do Beto? Era a única perua azul, fácil de achar. O degrau era alto, e ainda tinha a mochila pesada nas costas, mas ele sempre dava uma mão. Pra você aquilo ia muito rápido, os meninos se empurrando, as crianças falando alto, o fim do dia tinha essa agitação de cansaço. Você grudava na sua amiga, que era forte e brava. Talvez fosse ela que grudasse em você, porque era alta e um pouco mais velha. Vai saber quais são os verdadeiros motivos da escolha de nossos amigos. Isso eram, boas amigas, e no meio da bagunça que te desagradava, do barulho (o Beto dizia “sem gritar”, mas tão fraquinho que ninguém ouvia), a presença de uma amiga forte e brava te reconfortava.

Na Páscoa trazia ovinhos de chocolate, e no dia das crianças, figurinhas. Imagina, ele comprava do próprio bolso, sem obrigação. Também distribuía guarda-chuvinhas de vez em quando. E logo que entrava no banco do motorista, depois de carregada a perua, ligava o rádio. Durante o caminho as crianças mudavam de lugar, trocavam sobras de lanche, umas pulavam no chiqueirinho, pés passavam por cabeças. Sempre tinha uma conversa sobre um novo brinquedo, ou meninas que batiam mãos. As únicas três que nunca participavam eram as crianças amontadas no banco da frente. Eram sempre as mesma, por facilidade. Essa idéia de sentar na ordem da entrega nunca funcionava, lembra? Os endereços raramente coincidiam com as amizades. Uma queria ficar do lado da outra, todo mundo trocava de lugar, e cada vez que o Beto parava pra uma entrega, levava um tempo pra criança surgir do fundo da perúa. Como se saísse de uma gruta. Mas apesar do trânsito, da gritaria, da demora, o Beto seguia tranquilo. Graças ao rádio. Ouvia música o caminho inteiro.

Você não sabe, mas o fato dele ouvrir rádio é importante. Eu mesma só descobri isso muito mais tarde. Não sei como tomei conhecimento dessa música, mas no instante em que a ouvi, foi como se estivesse na perua do Beto. Sentada no banco de falso couro preto, que cola nas pernas. Olho para fora, e vejo o céu de um azul de começo de noite em São Paulo. Se mistura com as luzes dos faróis e das garagens dos prédios. Elas se desfocam, talvez com a chuva, e aparecem como estrelas coloridas pela janela da perua. Nesse ano de 1984, elas iluminam a noite cada vez mais escura. 

A música tem um nome pomposo. Uma introdução feita de sons daqueles anos. E uma frase mágica que diz “dentro do bombom há um licor a mais”. Uma extravagância. Evito dizer que a conheço (aliás, ninguém me pergunta), e não a ouço quase nunca, de medo que algum dia ela perca o seu poder. Nunca li a letra, me atenho às palavras à medida que surgem na melodia. Eu a guardo como uma joia. É a minha cápsula do tempo. Cada vez que a escuto é como se estivesse aí com você, e que vivesse de novo essa ideia borrada do mundo. Todas essas coisas que te rodeavam nesse ano de 1984... no seu lugar, experimento toda a incerteza dos nossos cinco anos, e curiosamente sinto saudades. Mas não sei exatamente do quê. Lá pelo meio da música acontece uma coisa estranha. É como se ela me jogasse pra frente, num impulso, pra tudo aquilo que vem depois, e que advirá. Nesse momento da música, é como se você estivesse aqui comigo, e experimentasse a minha temeridade.   

Depois do Beto, veio o seu João. Perua clássica, branca, com a faixa “escolar”. Perua taciturna como o motorista. Todo mundo ia sentadinho, pra facilitar a entrega. Nada de lanche ou figurinha. Eu só consigo lembrar dele na hora do almoço. A única coisa que te divertia era o assobio que ele combinou com vocês, pra que soubessem que ele já tinha chegado. Alguns anos depois, já no colegial, passei na frente da escola; ele ainda assobiava do mesmo jeito.

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