A praça estava toda tomada. O sol a pino e as inúmeras estruturas erguidas para a ocasião deixavam-na irreconhecível. Os hieróglifos do obelisco brilhavam sob a luz. De hábito, era um lugar espaçoso. Poucos tinham o privilégio da visão panorâmica, mas o espaço surpreendia até mesmo quem a alcançava por uma das travessas. Vindo de uma rua estreita, de repente se deparavam com a grande rotatória oval, a entrada do parque, o começo arborizado da avenida larga, o chafariz. Também a claridade não era a mesma, na maior parte do ano o céu baixo e cinzento coloria os prédios haussmanianos de um tom rosa pálido. Mas ali estavam os espectadores em grande número, numa massa densa e contínua. O dispositivo de segurança impunha níveis de acesso, portões de ferro e catracas, fazendo com que os espectadores mais abastados se encarcerassem com os atletas no meio da praça. De longe, eram invisíveis. Uma vez ou outra, uma bicicleta se destacava da multidão, numa manobra.
Vincent viu pelo visor uma mulher segurando o braço da filha, muito pequena para assistir um dos telões. Fazia movimentos amplos e dinâmicos com o abanador de papel. Uma derrogação ao plano inicial, mas devido à temperatura acima dos 35 era isso, ou os esguichos de água. O diretor geral do corpo de bombeiros logo descartou a segunda possibilidade com o inventário de cabos de borracha. Corte de gastos.
- Malditos abanadores! Fuck...
Nenhuma reação do americano ao seu lado. Talvez não tivesse entendido, era possível que só falasse inglês. O governo americano tinha aberto uma exceção para a ocasião, liberando o terraço da embaixada para a tropa Luxor. Vincent avistou um grupo de jovens que compartilhava uma garrafa. Os americanos tinham até posicionado alguns atiradores. Deitados no chão do terraço, miravam pelos buracos da mureta feitos para esse propósito. Cada atirador a um metro de meio de distância um do outro. Um barulho surdo ecoou pela praça. Gritos vindos da multidão, e aplausos. No telão apareceu uma japonesa, no máximo 14 anos, agitando um skate no ar. Era ouro.
Em 1836 mais de duzentas mil pessoas tinham se reunido ali mesmo para assistir ao erguimento do obelisco. Vindo de navio desde o Egito, tratava-se de uma proeza técnica. Vinte e dois metros de altura. O obelisco tinha sido um presente do vice-rei Méhémet Ali, que deixara a entrada do templo de Luxor em Tebas incompleta. Outro obelisco ainda protegia a entrada, mas sem o seu gêmeo, perdia a força simbólica. Parecia uma porta desdentada. Já naquela época poucas pessoas tinham o privilégio da visão panorâmica da praça. A família real fazia parte delas, e no dia do evento seus membros preferiram usufruir do privilégio, ao invés de aproximarem-se do obelisco. Temiam a aglomeração, que naquele lugar já tinha sido de mau agouro.
- Do you know, esse presente dos egípcios protegia o templo de Amon, o desconhecido.
- Really?
Três homens de casaco atravessavam a primeira catraca. Vincent tentou se concentrar nas cinturas. Nenhum sinal vermelho, mas os casacos pareciam grossos. Um deles usava um boné bordado com as argolas. O mais baixo enfiou a mão num dos bolsos, ficou nervoso. Pôs a mão no outro bolso, e nos da calça. Começou a gesticular, e seus amigos também se puseram a procurar alguma coisa nos bolsos e numa sacola de plástico que um deles levava na mão. Se dirigiram ao segurança da catraca. Vincent fechou os olhos.
A praça não tinha tido sempre o mesmo nome. Em 1794 se chamava Praça da Revolução. Das duas mil quatrocentas e noventa e oito pessoas decapitadas entre 1789 e 1795, mil cento e dezenove tinham perdido a cabeça bem ali. Danton, Luís XIV e Maria-Antonieta, madame du Barry, Lavoisier, Malesherbes. A praça foi nomeada praça da Concórdia em 1795, mas duzentos e trinta anos depois, nesse dia quente de 2024, esse nome talvez não fosse suficiente para espantar o mau agouro.
Ao abrir os olhos uma luz intensa atingiu as retinas de Vincent, fazendo com que os nervos óticos levassem até o cérebro uma primeira informação - a dor - e outra informação quase simultânea - o medo. Vincent apertou bem forte os olhos, esperando o barulho. E como nada vinha, reabriu-os lentamente. Teve a impressão de ver as cabeças ensanguentadas, mas no telão um moço, carregando uma bicicleta, era carregado pelos outros atletas. Outro ouro. O visor de sua arma se encontrava no ângulo exato da reflexão do feixe de luz, que naquele instante batia na ponta do obelisco. Mais ouro. Dali a quinze minutos chegaria o colega do turno da tarde. Vincent respirou aliviado.
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