30 juin 2024

Temos o hábito de sentar na frente dele. Até gostamos desse momento. Todo mundo gosta de atenção, do interesse que os outros tem na gente. E sua voz é agradável, quase voz de interlocutor de rádio. Fala bem, mas evita as palavras difíceis.

- Não podemos demorar muito, hoje o meu dia está cheio.

- Você sabe que nos vemos todas as semanas.

- Eu sei, mas não é sempre que posso conciliar minhas agendas.

- Suas agendas?

- Minha vida pessoal, meu trabalho...

- E se você falasse mais da sua vida pessoal?

- Mas pera aí, que merda é essa? E a comida? Nada sobre a comida? Vida pessoal o caralho!

Nunca estamos de acordo. Sobre nada. Nem mesmo sobre o que devemos falar. Isso é frustrante. Parece uma corrida nesses tapetes de academia. Sempre jogando o corpo pra frente, sem chegar em lugar nenhum.

- O que tem a comida?

- Não tem nada. Esse é o problema. Com dois ou três ingredientes, faço muito melhor.

- Se sente frustrado?

- Indignado! Sou chefe com estrela, me formei nos melhores restaurantes! Meu molho de trufas ganhou até prêmio. Puta que pariu, ninguém nunca comeu trufa aqui! Trabalho no Grand Colbert, lá perto da biblioteca nacional...  

Às vezes um de nós se sente mais à vontade, e a coisa vira pro monólogo. Eu sei que o homem não gosta disso, mas evita interromper. Anota umas coisas, e acena com a cabeça numa afirmação contínua. Acredita piamente nas palavras. Parece até que cada coisa que sai de nossas bocas tem um significado à parte, é um pensamento em si. Mas a gente só diz besteira, coisa banal. Ninguém é realmente muito interessante. O pior é que a gente nem tem muita coisa em comum. Tipo família,  fadados a conviver uns com os outros, a aturar a burrice dos outros.

- Eu tô achando isso muito chato, quero ir embora...

- Ainda não é a hora de ir embora. Você está triste?

- Tô. Ninguém me deixou ver desenho...

- Quem não deixou? Sua mãe? Seu pai?

Sempre tem essa hora do choro. É a criança que chora, porque não assistiu televisão, ou porque perdeu um brinquedo. Mas quando o homem toca nesse assunto, pergunta sobre sua mãe e seu pai, ficamos mudos. Ninguém lembra da onde vem, mas ninguém diz em voz alta. Isso mexe com a gente, porque gostaríamos de saber. Ficamos mostrando segurança, afirmando, falando mais alto. É só faixada. Todo mundo vem de algum lugar, menos a gente. E como nenhuma lembrança vem à cabeça, não dá pra puxar o fio da história. Nascemos desse jeito, nessa sala, já cacarejando... blá blá blá, falando, falando, falando. Isso não ajuda, tem sempre um falando, ninguém escuta. Como se pode pensar assim? No fim nem sabemos mais o que estamos fazendo aqui.  

- Me conte alguma coisa de quando era mais criança. Lembra de alguém te segurando no colo? Cantado uma música?  

- Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca!

Silêncio. Isso dura pouco, a cacofonia está sempre ali, engatilhada, mas por uns instantes... um silêncio. Como se o homem não existisse mais, ou os móveis desconfortáveis, ou a comida ruim. Nenhum de nós, nada.

- Aí está.

O homem espera, olha pra gente disfarçando um sorriso. Parece até que descobriu uma lei da Física. No fundo ele só se interessa por um de nós. Faz de conta o tempo todo, acena com a cabeça, como se ouvisse. Uma falsidade só. Uma estratégia, isso sim.

- Nada mais?

- Estamos perdendo tempo. Doutor, o senhor sabe que não posso passar da hora. Hoje vejo um cliente, caso de corrupção no futebol. Parece que tentou comprar um juíz e dois jogadores. Uma besteira, com tanto prestígio, vai se enfiar numa sordidez dessas.

- Digo, dessa cólera. Senti uma raiva que se exprimiu de repente.

- Raiva? Não tem cabimento. Enquanto profissional não posso ter esse tipo de sentimento, porque no Direito não há lugar para emoções, apenas os fatos devem ser trazidos à público, a neutralidade é a maior qualidade, como na vez em que defendi...     

Mas logo mais tudo isso acaba. Toda essa ladaínha. Outro dia, passamos pela entrada, subimos os dois lances de escada até a sala do homem, e alí estava : uma janela sem grade. É a do fundo do corredor. A coisa vai ter que ser rápida. Ninguém sabe. Nem tem como. Serão pegos de surpresa, ou nem vão percerber o que está acontecendo. Num momento estaremos andando em direção à sala do homem, e no outro voando do lado de fora. E aí sim, será só tranquilidade e silêncio.

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