Entrei no vagão, na porta à frente do segundo extintor de incêndio do corredor, no trem das 7h35. Foi o tempo de uma rápida olhada e logo o ví, rodeado de sacolas. Estava sentado num destes bancos que abrem e fecham. A maioria dos passageiros ocupava o lado oposto, claramente evitando o contato. Apenas duas ou três pessoas estavam mais próximas. Resolvi me posicionar no meio do vagão e me felicitei com a escolha. Dali tinha um ótimo campo de visão.
Ao contrário das aparências, sentíamos o cheiro dos perfumes caros, dos ternos e tailleurs bem lavados. A linha de trem passava pelos prédios das Embaixadas e da Organização Mundial. Se tudo corresse como o esperado, desceriam depois de mim. Achei a escolha curiosa, sem colocá-la em dúvida.
As sacolas estavam abarrotadas. A primeira, amarrada num carrinho de ferro, tinha sido fechada com fita colante. Pelo exterior não podia adivinhar o que tinha dentro. A outra, mais perto do homem, estava cheia e aberta. Uma bolsa laranja, dessas de viagem. No topo, avistei o livro do Karl Popper, e um outro do Alexandre Koyre. Em nenhum momento ele levantou os olhos da caderneta preta. Anotava incessantemente, franzia a testa, fazia movimentos com a boca. Na terceira parada, entreabriu uma sacola de supermercado e sacou uma calculadora científica. Impossível dizer se tinha notado a minha presença.
Não posso afirmar que a sua postura não tenha me desestabilizado. Nunca esqueci o que tinham dito dele. Que era um dos maiores, que tinha uma lista de feitos extraordinários. O matemático, diziam. Na época as coisas não tinham mais nada dos anos 70, da era pós crise dos misseis, das deserções. Mas Paris continuava a ser um dos lugares mais seguros para passar informações. E bem ou mal, oposições e interesses se redesenhavam, estratégias eram tramadas, corpos eram descobertos em quartos de hotéis.
Apesar do horário o trem seguia num movimento tranquilo, e umas três paradas depois, resolvi me virar para o homem. Queria cruzar o seu olhar, porque das outras vezes foi assim que soube que estava fazendo a coisa certa. O olhar do outro me dizia “continuemos”, e eu seguia cumprindo o meu papel, como no roteiro. Mas ele não parou de escrever, não fez um gesto sequer em minha direção. Foi aí que me veio à cabeça uma questão inopinada : o que eu tinha pra fazer essa missão? Eu conhecia os meus recursos: uma bolsa de fundo falso, roupas neutras de secretária, uma minúscula capsula de cianeto. Minha dúvida era outra, mais profunda. Naquele momento, o mais inadequado, me perguntava que força tinham visto em mim, a razão pela qual tinham me escolhido. Seria possível que ao invés de uma força escolhessem a pessoa por uma fraqueza?
Um barulho repentino trouxe a minha atenção de volta ao vagão, uma discussão entre um homem e uma mulher que aparentemente não se conheciam. Logo me concentrei nas páginas. Estavam repletas de fórmulas, símbolos que me eram estranhos, extremamente ordenados. A mão do matemático parou no meio de um número extenso; ela parecia esperar, querendo anotar o que se seguiria.
- Com licença.
A mulher vinha em nossa direção, atravessando o trem rapidamente. O matemático levantou a cabeça, olhou-a de modo firme. Pude sentir a rigidez dos seus movimentos; ao se levantar já não era mais aquele corpo mole que se misturava às sacolas, mas uma presença que pareceu absorver toda a tensão à volta. Num instante fui percorrida por um formigamento e as palavras se formaram na minha cabeça: ele acha que ela sou eu...
Me aproximei da sacola, o matemático deu um passo à frente, a mulher estava quase à nossa altura quando a porta se abriu. Me agarrei no corpo rígido, com toda a minha força. Caímos num abraço pra fora do trem. Ainda pude ver a caderneta no chão, e a mulher se agachando enquanto o sinal tocava, estridente. A porta fechou de uma vez.
Ele se levantou, arrumou as roupas e começou a murmurar palavras desconexas. Seu corpo tinha se tornado incômodo novamente. Esbarrava nas pessoas que começavam a nos rodear, fazia gestos amplos com os braços. Uma mulher me puxou pela cintura. Ouvi vozes que diziam que aquilo era inadmissível, que alguém chamasse a policia. Eu só conseguia pensar no livro que tinha na mão esquerda e que segurava com força. Queria colocá-lo o mais rápido possível dentro da minha bolsa, caída aos meus pés. Karl Popper. O matemático desapareceu na confusão, sem que ninguém lhe impedisse, sem que se dessem conta. Eu tentei me desvencilhar dos cuidados como pude. Sorri, afirmei que estava bem, tomei um gole da água que me ofereceram, estava atrasada para o trabalho. Dez minutos depois dele, eu estava na rua.
Dois dias mais tarde coloquei o livro na caixa de correio de um hotel, no centro da cidade. Essa foi a minha última missão. Nunca mais fui contatada. Revivi a cena uma quantidade de vezes. Durante anos sonhei com a mulher e o matemático. Numas vezes eram amantes, noutras ela o desenhava na caderneta. Sonhei com o nosso abraço, a nossa queda, na maneira como o meu corpo fino tinha se confrontado à sua rigidez. Não consegui decidir se o impulso do salto tinha vindo de mim, ou dele. Se era possível que eu o tivesse empurrado pra fora, ou se o seu plano era mesmo saltar. Foi bem mais tarde que me veio à lembrança um de seus movimentos: segundos antes da queda, ainda suspensos no ar, ele sussurrou “Popper” . Mas talvez seja invenção minha.
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