Naquele
dia, no exato momento em que abriu os olhos, soube que não se
trataria de um dia especial. Aquele seria um dia dos mais infâmes e
comuns que podem existir na vida de uma pessoa. Nada de notícias
surpreendentes, sentimentos extraordinários e transcedentais, ou
lugares exóticos. Nem mesmo o prazer de uma familiaridade qualquer,
embalada em conforto e segurança, e papel de seda. Pensou se valia
realmente a pena sair da cama, mas logo se deu conta que para se
viver um dia banal, não poderia se perder em considerações
existencialistas ou impressões essencialistas… Deveria apenas
deixar-se levar pelo fluxo da vida, pelas necessidades fisiológicas
e pelas regras sociais.
Assim,
abriu os olhos porque os primeiros raios de sol atravessaram a
cortina do quarto, e porque o despertador se pusera a tocar,
alarmado. Levantou, porque exatamente às 6h45 deveria estar embaixo
do chuveiro, e às 7h00, deveria estar vestido. Fugindo um pouco à
regra, pensou que tirava certa vantagem em existir segundo a
banalidade de um dia qualquer : economizava a alma e o
pensamento. Sem escolhas, sem responsabilidades, sem a consciência
de necessidades morais e das vicissitudes inevitáveis à existência,
alí mesmo onde gostaríamos de descobrir os meandros do destino,
infundados apenas em aparência. Ademais, encontrar uma razão para
existir, fundamentar os próprios atos numa legitimidade, exigiam um
esforço considerável. Pior : muitas vezes viver tentando
evitar a infâmia resultava mais em dúvidas do que em certezas. Ou
seja, além de « gastar » a alma e a própria
sensibilidade, o resultado de tais esforços era irrisório (nunca
tinha chegado à nenhuma verdade fundamental, pelo que sabia). E se
surpreendeu com a própria tolice ; como não havia pensado
antes em viver segundo as regras da vulgaridade? Porque insistia
nessa incansável e estúpida mania de profundez ?
O
cheiro do pão torrado com café quente instigara as razões do
próprio estômago, rechaçando as últimas questões
existencialistas que lhe atravessariam o espírito até o instante em
que cessaria de respirar. As vantagens da infâmia, misturadas aos
espasmos fisiológicos causados pelo café da manhã, lhe pareceram
tão límpidos e absolutos, que à partir do momento em que passou
pela porta, ele nunca mais conseguiu usar de sutileza, ou
profundidade novamente. Aquele dia tinha lhe parecido um dos mais
banais, mas foi, na realidade, o momento fundador de uma existência
extremamente e incontestavelmente vazia.
1 commentaire:
Eu vou ficar muito, muit, muito feliz no dia em que você resolver um livro. De preferência com muitas páginas....
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